17.3.10

O Imperialismo, Hoje


Por Pablo González Casanova
Ex-reitor da Universidade Nacional Autônoma do México

No fim do século XX, o imperialismo, que é a formação mais avançada do capitalismo, domina no mundo inteiro, com exceções como Cuba, muito pouco explicadas na teoria das alternativas. Desde os anos 1970 e 1980, as redefinições ou reestruturações do imperialismo deram uma força especial ao processo conhecido como “globalização”.

Sob esse processo se delinearam as novas formas de expansão das grandes potências, em particular dos Estados Unidos. Na década de 1970, os Estados Unidos tomaram a ofensiva no controle mundial ao impor o dólar em vez do ouro, que até então tinha sido o referente de todas as moedas. Os Estados Unidos, juntamennte com a Europa e o Japão, formaram uma Tríade (que o primeiro país encabeçou) e com ela promoveram uma política de endividamento interno e externo dos governos que enfrentavam uma crise fiscal crescente ou uma crise na balança de pagamentos.

Suas principais vítimas foram os governos dos países dependentes, incapazes de alterar a relação de intercâmbio desfavorável, ou o sistema tributário regressivo, e coagidos ao mesmo tempo a satisfazer demandas populares mínimas para manter sua precária estabilidade. A política global de endividamento dos poderes públicos e nacionais renovou o velho método de submissão dos devedores pelos credores, e ocorreu em nível macroeconômico mundial, incluindo muitos governos das cidades metropolitanas.

O processo de endividamento correspondeu ao desenvolvimento de um capitalismo tributário e à submissão financeira renovada dos países dependentes. Com taxas de juros móveis, que podiam aumentar à discrição do credor, a política de globalização impôs um sistema de renovação automática de uma dívida crescente e impagável que fez da dependência um fenômeno permanente de colonialismo financeiro, fiscal e monetário. Desde 1973, após o golpe de Estado de Pinochet, implantou-se no Chile o neoliberalismo.

Desde os anos 1980, o neoliberalismo se converteu na política oficial da Inglaterra, com Thatcher, e dos Estados Unidos, com Ronald Reagan. As forças dominantes enalteceram o neoliberalismo como uma política econômica de base científica e de aplicação universal, reafirmando e renovando a ofensiva anglo-saxã, que desde o século XVII impulsionara a Inglaterra, sob o manto do liberalismo clássico, a aproveitar as vantagens que o fato de ser o país mais industrializado lhe dava no comércio mundial.

A globalização neoliberal iniciada no fim do século XX também teve como objetivos centrais: a privatização dos recursos públicos; a desnacionalização das empresas e patrimônios dos Estados e povos; o enfraquecimento e a ruptura dos compromissos do Estado social; a “desregulagem” ou supressão dos direitos trabalhistas e da previdência social dos trabalhadores; o desamparo e a desproteção dos camponeses pobres em benefício das grandes companhias agrícolas, particularmente as dos Estados Unidos; a mercantilização de serviços antes públicos (como a educação, a saúde, a alimentação, etc.); o depauperamento crescente dos setores médios; o abandono das políticas de estímulo aos mercados internos; a instrumentação deliberada de políticas de “desenvolvimento do subdesenvolvimento” com o fim de “tirar do mercado” globalizado os competidores das grandes companhias.

O neoliberalismo globalizador exportou a crise para as periferias do mundo ao mesmo tempo em que se apropriou dos mercados e meios de produção e serviços que tinham sido criados no pós-guerra, substituindo os que não fossem rentáveis e estabelecendo um neocolonialismo cada vez mais acentuado e repressivo, em que compartilhou os lucros com as oligarquias locais, civis e militares, e negociou com elas privatizações e desnacionalizações para associá-las ao processo.

A negociação, como concessão, cooptação e corrupção, adquiriu características macroeconômicas e esteve constantemente vinculada a novos fenômenos de paternalismo, de humanitarismo caritativo, de cooptação e corrupção de líderes e clientelas, fenômenos que abarcaram até mesmo as populações mais pobres e castigadas, contra as quais se preparou um novo tipo de guerra chamada de baixa intensidade, com o emprego de contingentes militares e paramilitares, e com as mais variadas formas de terrorismo de Estado por conta das “forças especiais”, encarregadas de “operações encobertas” realizadas por agências governamentais, ou por agentes subsidiados e contratados pelas mesmas.

Os negócios da droga aportaram contribuições milionárias na montagem de um teatro de confusões e à perda de sentido das lutas alternativas. Também serviram para consegur a criminalização, real ou fingida, de líderes e movimentos populares, sistêmicos e anti-sistêmicos. Nos anos 1990, a guerra econômica entre as grandes potências substituiu o projeto de governabilidade do mundo pela Trilateral.

Os Estados Unidos subjugaram em poucos anos o Japão e os Tigres Asiáticos. O grande capital impôs uma política de apoio fiscal, político e militar crescente aos contribuintes mais ricos, muitos deles possuidores dos bancos e das megaempresas, amiúde também integrantes dos altos cargos públicos e das velhas e novas elites dominantes. Os privilégios para o grande capital legalizaram formalmente a apropriação de recursos públicos e privados no centro e na periferia do mundo capitalista, incluindo o direito a especulações gigantescas como a que esteve a ponto de falir o Banco da Inglaterra.

Passados pouquíssimos anos do início do processo, o complexo militar-empresarial dos Estados Unidos, expressão máxima do capitalismo organizado dominante, confirmou que suas mediações, instituições e recursos de dominação ideológica, política e econômica tinham chegado a um ponto de crise ameaçadora ao seu domínio e interesses. Isso o levou a endurecer sua política e empreender novas ações que lhe permitissem se manter na ofensiva e ampliar sua situação de privilégio.

A crise das mediações do capitalismo organizado se manifestou: em um crescente desprestigio de seu projeto de democracia de mercado; nos graves escândalos de corrupção de que foram atores os principais gerentes e proprietários das megaempresas – supostamente mais honrados do que os funcionários populistas e socialdemocratas dos governos dos Estados “minimizados”; no insuportável mal-estar de uma cidadania sem opções, aprisionada entre os mesmos programas e políticas de democratas e republicanos, e vítima da insegurança social e do desemprego em ascensão; da deterioração e da insuficiência das escolas públicas; da falta de serviços médicos e de remédios; da criminalidade generalizada em zonas urbanas e rurais.

As eleições fraudulentas e elitistas em que Bush perdeu a presidência dos Estados Unidos por 500.000 votos e pouco depois a ganhou pela decisão de uma minoria de quatro juizes a favor e três contra, foram o ponto de partida de um processo de lógica totalitária em que as mentiras não são ditas para que se acredite nelas mas, sim, para que sejam obedecidas. E como à crise de instituições e de mediações se somou o perigo de uma recessão que não cedia, os Estados Unidos levaram a Europa à guerra econômica com a qual já tinham controlado o Japão.

Ao mesmo tempo, aceleraram uma ofensiva geopolítica mundial que já tinham iniciado anos antes. Com a invasão do Iraque culminaram suas intervenções na Europa Central (Kosovo), na Ásia Central (Afeganistão) e no Oriente Médio, esta última por conta de Israel, um elemento da estratégia militar do “Ocidente” cada vez mais instrumentalizado pelos Estados Unidos.

Dez anos de bombardeios contra o Iraque, apoiados pelas próprias Nações Unidas, após debilitar e empobrecer terrivelmente este país, facilitaram a ocupação de seu território e, sobretudo, de suas imensas riquezas petrolíferas. Os Estados Unidos mostraram cada vez mais estar na posição de líder da globalização neoliberal e inclusive fizeram gestos simbólicos e prepotentes que confirmaram seu caráter de “Soberano” que pode estar acima das Nações Unidas para declarar a guerra, da Suprema Corte da Justiça para violar os direitos humanos, dos acordos de Kioto para não assinar um compromisso que os obrigasse a tomar as medidas necessárias para a preservação da Terra.

A nova política globalizadora diante da crise interna e externa consistiu em dar prioridade ao neoliberalismo de guerra e à conquista de territórios, empresas e riquezas mediante o uso da força. No campo ideológico os Estados Unidos complementaram sua ideologia de luta pela democracia e pela liberdade, gravemente desprestigiada, pela ideologia de uma guerra preventiva contra o terrorismo.

Adjudicaram-se o direito de definir o que seria terrorismo e de incluir na definição todos os opositores de que precisassem se desfazer, bem como de excluir dela todos os delinqüentes de que tivesse necessidade e seus próprios corpos especiais militares e paramilitares “com direito a matar” e “torturar”. A guerra não esteve incluída nos atos de terrorismo, nem o bombardeio e extermínio das populações civis, de povos, cidades e países inteiros. Pelo contrário, os Estados Unidos afirmaram empreender uma guerra do Bem contra o Mal, dispondo-se a travá-la em todas as partes do mundo e por um tempo indefinido.

Nem todos os falsos mitos da Idade Moderna foram destruídos. Muitos, como a democracia com sangue, foram impostos pela força. O governo dos Estados Unidos fingiram que tinham ido ao Iraque para impor a democracia e construir um país independente mediante a conquista. Seus enganos premeditados mostraram tanta violência quanto a que exerceram sobre a população do Iraque com o argumento de que seu verdadeiro objetivo era aprisionar Sadam Hussein, enquanto, para tanto, destruíam o país, cidade por cidade e casa por casa, e se apoderavam de seus ricos poços de petróleo.

A consternação mundial diante dessa política desumana se manifestou no desfile de milhões de pessoas nas grandes capitais do mundo. Também apareceu no desconcerto e na sensação de impotência que viveram os movimentos sociais partidários da paz e em luta por “outro mundo possível”. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos se propuseram a demonstrar sua decisão de atuar sozinhos quando fosse necessário, e de associar aos seus projetos de intervenção mundial os governos dos países
altamente desenvolvidos e das potências intermediárias, assim como as demais burguesias e oligarquias do mundo que se submetessem a aceitar e apoiar “os seus valores e os seus interesses”.

Mediante concessões e repressões, trataram de forjar um complexo imperialista. Pelo sentido comum entenderam que a repartição do butim e das zonas de influência deveria conceder prioridade sempre aos Estados Unidos, com pequenos ajustes prévia ou posteriormente negociados. A política de repressões e de negociações abarcou todos os atores e todas as ações. Orientada sempre pela política de privatização, incluiu a privatização das empresas de guerra e dos exércitos, e a privatização em profundidade e em extensão, incluindo a terra e o subsolo, as fontes energéticas, a água e os mares, o ar e o espaço aéreo.

Nesta etapa da globalização neoliberal, os Estados Unidos e seus complexos e redes de associados e subordinados continuaram aproveitando a crise atravessada pelos movimentos de libertação e aqueles favoráveis à democracia e ao socialismo. Os movimentos alternativos, sistêmicos e não sistêmicos, continuavam padecendo da desestruturação e alienação de ideologias e estruturas e dos fluxos de informação e ação.

Embora desde os anos 1990 começasse o movimento universal por uma nova alternativa, que procurava combinar e enriquecer as experiências das lutas anteriores, a clareza de idéias e a eficiência da organização de povos, trabalhadores e cidadãos mostraramse muito ineficientes para enfrentar a terrível ofensiva. Muitos deles tinham pensado que a crise crescente do capitalismo em si mesma os favorecia. Não tinham imaginado a imensa capacidade de reação e de violência de que era capaz o capitalismo. Ou não quiseram vê-la.

A “guerra preventiva de ação generalizada” não constituiu somente uma mudança profunda em comparação com a “estratégia da contenção” que tinha predominado durante a guerra fria: foi também a forma mais adequada – a curto prazo – para que o grande capital e as potências imperialistas impedissem o desenvolvimento da consciência e a organização das forças alternativas emergentes. Nessas circunstâncias, umas contradições começaram a atropelar as outras sem que se destacassem as lutas pela libertação, pela democracia e pelo socialismo como aquelas capazes de dar um novo sentido à História.

untamente com as grandes manifestações de protesto contra a guerra, apareceram movimentos locais e globais de uma riqueza teórica e organizativa extraordinária; mas suas lutas tenderam a limitar-se a ações de protesto, e quando muito a ações de pressão passageira, ou de lenta construção de alternativas. Em sua maioria, continuaram a mostrar-se incapazes de diminuir o ímpeto da política neoliberal que, na paz e na guerra, está levando o mundo a uma catástrofe generalizada.

A tais movimentos, ao mesmo tempo alentadores e incipientes, somaram-se outros, de um pensamento religioso e fundamentalista, que tendem a reproduzir a situação anterior de opressão e alienação dos povos oprimidos e fanatizados. Os líderes da resistência raramente se mostraram líderes de um pensamento crítico e radical; ou, freqüentemente, o representaram em suas formulações mais autoritárias e confusas, como no caso dos maoístas do Nepal, que voltaram a agir como líderes de movimentos armados incapazes de construir um mundo alternativo.

Em muitos outros casos, os movimentos guerrilheiros foram penetrados pela contra-insurgência que, com o narcotráfico e os agentes especiais, os desabilitaram a empreender a necessária revolução ético-política. Numerosas guerrilhas se transformaram em grupos de foragidos sem outra lei nem ideologia além da pilhagem e da dominação repressiva das próprias populações em que se inseriam, às quais por vezes chegavam a impor políticas clientelistas e de privilégios excludentes, étnicos ou lingüísticos.

Pareciam estar feitas à imagem e semelhança dos “terroristas bestializados” pelo terrorismo de Estado. Por todas as partes, e nas mais diversas culturas, desenvolveram-se instintos autodestrutivos, individuais e coletivos, muitos deles vinculados a uma violência do desespero. No campo das lutas políticas e sociais, dos partidos e das organizações da sociedade civil, os modelos de corrupção e repressão, de conformismo e de alienação anularam diversos movimentos que, de início, indicavam uma saída aos povos.

Seus líderes foram cooptados ou corrompidos, ou simplesmente se adaptaram a um mundo controlado em que predominam as filosofias individualistas segundo as quais cada um “defende o seu”. É verdade que, ao mesmo tempo, foram surgindo grandes movimentos como os de Chiapas no México, Seattle nos Estados Unidos, Porto Alegre no Brasil, o outro Davos na Europa, Mombay na Índia e muitos outros, que tentam unir o local e o universal e criam os novos projetos de um mundo livre, eqüitativo e independente que se aproxima da verdadeira democracia, do verdadeiro socialismo e da verdadeira libertação.

Todas as lutas mencionadas, porém,ocupam um espaço pequeno demais no tocante às necessidades da mudança sistêmica e da sobrevivência humana, ameaçada por uma guerra contra os pobres que pode terminar em guerra bacteriológica e nuclear. Apareceram ao mesmo tempo, por conseguinte, as contradições entre o imperialismo e os países dependentes, neocoloniais e recolonizados; as contradições entre os trabalhadores e o capital, muitas delas mediatizadas e estratificadas; as contradições entre as etnias e as nações-Estado; as contradições entre as potências atômicas e nucleares e entre os próprios integrantes da comunidade imperialista, zelosos de suas zonas de influência e temerosos de perder poder e privilégios.

Todas estas e muitas outras contradições se esboçaram em um imperialismo dominante mais ou menos coletivo, que tende a identificar-se com o capitalismo como sistema global. O desfecho das contradições não pareceu assegurar-se no sentido de que um sistema mais justo e livre do que o sistema capitalista mundial pudesse ser atingido no tempo de uma geração de lutadores políticos, sociais ou revolucionários.

Ainda mais, a ameaça à sobrevivência da humanidade fez com que os governantes obrigatoriamente pensassem em uma alternativa ainda mais sinistra, capaz de manter seus privilégios e seu poder: a destruição de uma parte da humanidade para a sobrevivência do resto dela. Este raciocínio levou à imposição paulatina e constante de um regime de “nazismo-cibernético”, com a eliminação de povos inteiros pelo mundo afora, à maneira de Pol-Pot, ou do equivalente aos sete milhões de judeus vitimados pelo nazismo anterior, que agora desponta no campo de concentração e eliminação em que o imperialismo e seus associados converteram a Palestina.

A imoralidade e a criminalidade doentias dos novos dirigentes do sistema, como as dos antigos nazis, combinadas com o conhecimento e o uso que fazem das tecnociências e dos sistemas auto-regulados, adaptativos e criativos, anunciam obscuramente um futuro negro para a humanidade, caso os povos das periferias, e inclusive os das metrópoles, não consigam impor a transição para um sistema de produção e democracia pós-capitalista que assegure a vida humana e a sobrevivência da espécie.

Todas as redefinições do imperialismo de hoje parecem dirigir-se à construção de um império liderado pelos Estados Unidos, seus associados e subordinados, em que é mais provável uma guerra entre as potências nucleares do que uma revolução social, ou do que uma mudança de rota em direção à socialização, democratização e independência real das nações, cidadãos e povos. Deste fato derivam, em parte, as afirmações irresponsáveis de Michael Hart e Antonio Negri no sentido de que seja necessário substituir o conceito de imperialismo pelo conceito de império e o de luta de classes pelo de uma luta da “multidão” contra o “império”.

A superficialidade desta interpretação se deve em grande medida a uma conjuntura histórica em que é evidente que a construção do império mundial pelos Estados Unidos ocupou o primeiro plano da cena. Também se deve ao fato evidente de que a luta de classes original e atual tem sido fortemente mediatizada por outras lutas políticas, econômicas, ideológicas e sociais, e de que as organizações que lutaram contra o sistema de dominação e acumulação característico do Capitalismo foram mediatizadas e derrotadas, primeiramente no século XIX, depois no século XX. No início do século XXI ainda se vive a desorganização das forças alternativas e de suas próprias organizações ou meios para alcançar o socialismo, a democracia, a libertação.
-
O caráter relativamente desestruturado e multitudinário que as forças alternativas ainda apresentam é evidente. Mas, nem do projeto norte-americano de um Império Global, nem da crise mundial das alternativas se pode derivar que, em vez de pensar e agir contra o imperialismo, se deva pensar e agir contra o império, e que, em vez de pensar nas novas organizações da resistência e da organização do poder alternativo, se deva lutar nos termos vagos de um pensamento libertário ou neoanarquista conservador que pretenda enfrentar a multidão desorganizada ao capitalismo mais organizado de toda a História.

A origem da formulação mistificadora de Hart e Negri provém de uma lógica das disjuntivas que geralmente tem sido reacionária. Consiste em pensar que as novas características do imperialismo acabem com o imperialismo, ou que os novos aspectos da luta de classes se expressem em uma luta histórica empreendida pelas multidões – este outro termo que o pensamento conservador e elitista sempre aplicou aos povos que teme agressivamente.

A verdade é que hoje, mais do que nunca, o conceito do imperialismo como uma etapa do capitalismo e da História da humanidade continua sendo um conceito fundamental. Ao articular a História dos impérios com a História das empresas, o conceito de “imperialismo” pôs a descoberto o poder crescente das empresas monopolistas e do capital financeiro. Também reformulou a luta antiimperialista combinando a luta das nações oprimidas com a luta das classes exploradas.

Se hoje estamos assistindo à construção de um império mundial pelo complexo militar-empresarial dos Estados Unidos (e a palavra império lhes parece grata desde a rainha Vitória), tal projeto de Império corresponde às mais avançadas políticas imperialistas e capitalistas: combina a força crescente das megaempresas e das potências, em que se apoiam e de que se servem, com as novas formas de dominação e exploração dos povos e dos trabalhadores. De fato, o projeto mencionado articula cada vez mais o imperialismo ao capitalismo, até tornar cada um deles incompreensível sem o outro.

Ainda mais, permite explorar as contradições na construção do império mundial norte-americano em pugna inevitável com outros impérios dada sua crescente apropriação e dominação de territórios, recursos e populações, bem como o fato de que apareça como o beneficiário principal da nova acumulação original e ampliada de capitais, formulando problemas de insegurança às grandes potências e às potências intermediárias.

A luta contra o imperialismo e o capitalismo, encarada como uma luta pela democracia, pela libertação e pelo socialismo, corresponde, por sua parte, a um fenômeno alternativo de sistemas emergentes, e, tanto por suas tendências naturais como pelas que serão encaminhadas para atingir tais objetivos, pode ter um crescimento exponencial que inclua a própria população dos Estados Unidos, sem mencionar a do resto do mundo.

Nesse futuro o exemplo de Cuba, longe de ser “excepcional”, tem características universais que se tornarão cada vez mais evidentes conforme se descubra nela a necessidade ético-política que todo movimento pela libertação, pela democracia e pelo socialismo deve priorizar na organização de seu pensamento e de suas ações.

Pesquisa, copy e edição – Flavio Deckes

Kapital & Religião

Por Marcelo Barros *

Nesta quarta-feira (24/2), em todo o Brasil, o Conselho Nacional de Igrejas (CONIC) que reúne oito denominações cristãs, inclusive a Igreja Católica, lançou a Campanha da Fraternidade Ecumênica 2010, com o tema “Economia e Vida”.

O lema vem de uma palavra de Jesus: “Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro” (Mt 6, 24).

Ainda há quem pense que a fé e a espiritualidade nada têm a ver com a organização prática do mundo e com o modelo de economia vigente na sociedade.

Provavelmente, quem acha isso nunca leu profundamente os livros sagrados das diversas tradições espirituais. Especificamente, a Bíblia propõe ao mundo uma nova organização do mundo, baseada em uma economia de justiça e irmandade entre todos os seres humanos.

A fé é como um par de óculos que nos faz ver a realidade sob um novo prisma. Leva-nos a aprofundar jeitos alternativos para vivermos, inseridos na sociedade, o testemunho de um projeto divino para a humanidade e para cada pessoa.

A fim de realizar este “novo mundo possível”, nos unimos em comunidades e exercitamos práticas espirituais. Elas servem como instrumentos metodológicos para aprimorar nossa relação com o Espírito, presente e atuante em nós, nos outros e no universo.

Esta relação deve transformar nossa relação com os outros e com todos os seres vivos.

No mundo antigo, pastores das Igrejas do Oriente denominaram o modo de organizar e administrar este plano divino no mundo com o termo: economia. Na língua grega, oikos e nomos designam a administração da casa.

Assim, a economia é a administração do mundo como uma casa comum a todos, para que toda a família humana possa viver dignamente e de modo solidário e feliz.

Infelizmente, no decorrer dos últimos séculos, a Economia foi aprimorada para garantir a manutenção da riqueza e do lucro nas mãos de uma minoria e relegar dois terços da humanidade a condições de miséria.

“Segundo relatório da Organização das Nações Unidas, ONU, sobre a campanha das metas do milênio, em 2008, os bancos ganharam mais dinheiro do que todas as nações pobres do mundo em 50 anos.

Durante meio século, os países ricos destinaram às nações pobres quatro bilhões de dólares. Só em 2009, as instituições financeiras ganharam nove vezes mais, cerca de 35 bilhões de dólares. Em 2008, 915 milhões de pessoas no mundo passavam fome. A partir da crise econômica, esse número chegou a um bilhão” (texto base da CF 2010, p. 35).

Durante anos, Dom Hélder Câmara, então arcebispo de Olinda e Recife, dizia sua tristeza ao verificar que a maioria dos países mais injustos e responsáveis por essa distorção social é de cultura dita cristã.

O Brasil, país naturalmente rico e com imensas possibilidades de desenvolvimento, ainda ostenta índices vergonhosos de desigualdade e injustiça social.

“Na raiz da desigualdade social, está a concentração de terras nas mãos de poucas famílias ou empresas. Cerca de 3% das propriedades rurais do país têm mais de mil hectares e ocupam 56, 7% das terras agricultáveis, enquanto 48% de famílias pobres não têm um palmo de chão para viver e plantar (Texto base da CF, p. 40).

Em meados de 2009, órgãos competentes calcularam que o salário mínimo real está em 20% do que seria a quantia necessária para atender as necessidades básicas de uma família de dois adultos e duas crianças.

Isso exige de nós um compromisso de solidariedade e ações para transformar esta realidade. A Campanha da Fraternidade propõe várias iniciativas, como incluir, entre os direitos previstos na Constituição Federal, a alimentação adequada para todos, erradicar definitivamente o analfabetismo, combater o trabalho infantil, assim como exigir políticas econômicas redistributivas dos bens e das riquezas, garantidas por leis e efetivadas pelas estruturas do Estado.

Conclama as igrejas e a sociedade a criar e multiplicar bancos de microcrédito e bancos comunitários, na direção de uma economia justa e solidária.

Atualmente, a própria deterioração das condições ambientais mostra que é urgente uma transformação da sociedade na direção da sobriedade e do cuidado uns com os outros e com todos os seres vivos.

A Páscoa é memória da libertação do povo de Israel, celebração da ressurreição de Jesus e profecia de um modo novo de vida para toda a humanidade. Para vivermos felizes esta celebração e ela ter repercussão em nossas vidas, precisamos de uma economia pascal de justiça e solidariedade.

* Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 26 livros, dos quais o mais recente é "O Espírito vem pelas Águas". Ed. Rede-Loyola, 2003.

Pesquisa, copy e edição – Flavio Deckes, com Brasil de Fato

16.3.10

Vem aí em 2012 a Super Internet

Só 10 por cento dos endereços IP estavam livres para registro no começo do ano.
A explosão dos celulares e o uso maciço da rede pelo mundo esgotaram os endereços IP.

Um novo protocolo – Ipv6 – foi desenhado para substituir a versão IPv4, a mais usada hoje.

O IPv6 já é usado na China, no Japão e na Índia. Estamos numa fase de transição, e a desigualdade digital entre países ricos e pobres vai aumentar. A primeira reunião do grupo Ipv6 da União Internacional de Comunicações (IUT) aconteceu em Genebra, dia 16 de março.

Uma IP (Protocolo Internet) é um endereço numérico indispensável para acesso à internet. “É um código de entrada. A cada computador se atribui um único endereço IP”, explica à swissinfo Rosa Delgado, vice-presidente da Internet Society (ISOC) da Suíça.

- Em 1975 foi criada a internet e começou o registro de enormes quantidades de endereços para governos e empresas. A internet se popularizou cada vez mais. Nos anos 90 ficou claro que o protocolo IPv4 não era suficiente. Na mesma década também foram criados os domínios .com, .net e .org. A internet cresceu muito rápido”, diz Rosa Delgado.

A partir de 2000 o mundo pedia endereços IPv4, principalmente China, Índia, Brasil Até aí os Estados Unidos eram os maiores consumidores de endereços IP. No entanto, não se levava em conta a explosão da telefonia móvel. “Os países citados deixaram de ser emergentes. A China já tem agora o maior número de usuários de internet”, revelou Rosa Delgado.

História do IPv6

A Internet Engineering Task Force (IETF) promoveu em 1995 o novo protocolo de internet IPv6. “Uma nova solução que os Estados Unidos e os países desenvolvidos não queriam e não necessitavam. Os Estados Unidos frearam a implantação do IPv6. Seu alto custo também era uma dificuldade adicional. China e Índia começaram a utilizá-lo e em 2000 foi adotado pelo Japão, que começa a migrar seus sistemas com apoio da China e da Índia. Na Ásia, começam a migração para o IPv6 por conta própria”, analisa a especialista.

Um pouco depois, entre 2004 e 2006, os Estados Unidos e a Europa se abrem ao novo protocolo. Em 2008, o governo norte-americano decide migrar para o IPv6. Todas a administração e as empresas estatais já trabalham com essa nova versão de internet. “Inclusive as entidades públicas dos Estados Unidos têm que justificar o uso do antigo protocolo IPv4. Isso obrigou todas as empresas a passarem para o IPv6 para poderem se comunicar com o governo”, explica Delgado.

Na Europa, cada país toma sua decisão. A Espanha instalou o IPv6 em 2002 em uma rede de universidades. A União Europeia (UE) queria estimular o novo protocolo através de incentivos econômicos, mas não pode obrigar os Estados Unidos a generalizar a inovação. Para complicar, tudo está nas mãos das grandes operadoras de telecomunicações, que não querem investir na ausência de clientes potenciais.

Até 2004, a maior parte dos endereços em IPv6 estava na Ásia. Os Estados Unidos começam a recuperar o terreno perdido. Na América do Sul, Brasil, México e Argentina marcam pontos com o novo protocolo. Em 2005, foi criada na China a maior rede do país para conectar as universidades nacionais. Uma rede dessas dimensões não teria sido possível com o IPv4, pela grande quantidade de endereços IP que o projeto pedia, aponta Rosa Delgado.

Fosso digital aumentará

Atualmente se esta em fase de transição mundial para o IPv6. Essa fase começou em 2000 e vai se prolongar por quinze anos, mesmo que ainda não seja palpável. É como a passagem da telefonia fixa para a telefonia móvel.
O IPv6 tem melhor infraestrutura, facilita o acesso a celulares e novas aplicações, além de ser mais seguro.

O IPv6 permite um volume de números muito maior do que o atual. Por outro lado, a versão IPv4 está muito mais limitada e permite um acesso menor aos novos serviços. “As novas aplicações já são desenvolvidas para o novo protocolo, para redes peer-to-peer (P2P), que funcionam sem servidores fixos. Por isso é preferível acabar com os antigos sistemas, pois seria muito caro adaptá-los à nova infraestrutura mundial”, avalia.

Essa migração levará mais tempo nos países desenvolvidos e eles estarão desconectados de internet por algum tempo. Os novos sistemas pensados para o IPv4 exigem grandes investimentos em infraestrutura. Por que não fazê-lo com o novo protocolo, pergunta Rosa Delgado.

Os países em vias de desenvolvimento podem ficar fora dessa mudança, como já ocorre com a conexão internet. Como não dispõem de capacidades técnicas, o fosso digital será ainda maior. “É preciso pensar no que se pode fazer para reduzir esse fosso.”

Características do IPv6

- Permite maior espaço de direcionamento, segurança, autoconfiguração e mobilidade.
- Infraestrutura de endereços de maneira mais eficaz e hierarquizada.
- Mobilidade
- Segurança Integrada
- Capacidade de ampliação
- Qualidade de serviço
- Velocidade

Na década de 70 os autores do protocolo versão IPv4 se basearam num sistema de 32 bits que podia gerar mais de 4,2 trilhões de endereços. Isso não cobre a atual demanda. No IPv6, os endereços passam de 32 para 128 bits. Especialistas prevêem que os endereços IPv4 ainda não registrados acabam até 2012. IPv4 e IPv6 são incompatíveis. As páginas web visíveis numa versão não aparecem na outra.

Pesquisa, copy e edição – Flavio Deckes

Socialismo Traído


Traição ao Socialismo foi causa de extinção da URSS.

A afirmação foi feita por dois militantes comunistas norte-americanos ao jornal Avante!, do Partido Comunista Português, em entrevista publicada sobre o exaustivo estudo que os dois fizeram em um livro dedicado às causas da derrota do socialismo e à desagregação da URSS.

Roger Keeran e Thomas Kenny são militantes comunistas norte-americanos. Roger é historiador com obra publicada e professor universitário. Thomas é economista. Amigos de longa data, lançaram-se juntos no estudo e aprofundamento das causas que levaram à derrota do socialismo e à desagregação da URSS, malogro que significou uma perda incalculável para os trabalhadores e povos oprimidos de todo o mundo. As reveladoras conclusões a que chegaram estão expostas no livro Socialismo Traído, recentemente publicado pelas Edições Avante! A íntegra da entrevista:

Avante - Desde quando e porquê se interessaram pela investigação das causas da derrota do socialismo e do colapso da União Soviética?

Thomas Kenny
– Tanto eu como o Roger considerámos os acontecimentos entre 1989 e 1991, o colapso do socialismo europeu, como um desastre titânico. Após 1991 pensámos que a história do socialismo suscitaria o interesse de muitos investigadores e que haveria uma avalanche de publicações sobre o assunto. Mas enganámo-nos, não houve nada, apenas silêncio.

Apesar de este não ser o campo de trabalho de nenhum de nós, decidimos especializar-nos nesta área para fazer a investigação, lendo toda a literatura que encontrámos disponível. Trabalhámos durante quatro anos, entre 1991 e 2004, ano em que publicámos o livro nos Estados Unidos com as conclusões do estudo.

Mas o que nos levou realmente a tentar determinar as causas do colapso foi o fato de a teoria em que acreditamos não "autorizar" tal situação. O colapso do socialismo estava em contradição com tudo aquilo em que acreditávamos. Nunca pensámos que fosse possível destruir o socialismo, antes pelo contrário acreditávamos firmemente que o socialismo iria desenvolver-se e crescer continuamente.

P - O materialismo histórico estaria afinal errado?…

TK – Não. Estávamos certos de que, enquanto método, o materialismo histórico permanecia válido, mas interrogámo-nos por que é que nada se disse sobre isto? Precisámos de muitas leituras e mais de um ano e meio até começarmos a identificar algumas peças deste quebra-cabeças e nos darmos conta do peso da chamada "segunda economia" na União Soviética, fator que se revelou decisivo nas nossas conclusões.

RK – Nós acreditávamos que o socialismo do século 21 precisava saber o que é que tinha acontecido ao socialismo do século 20. Depois da Revolução de Outubro, o acontecimento mais importante do século 20 foi, talvez, a destruição da União Soviética e do socialismo na Europa.

P - Existe a idéia de que a perestróika constituiu uma resposta a uma crise econômica, social, política, cultural, ideológica, moral e partidária, consequência de graves deformações ao ideal socialista, de distorções, erros e atrasos acumulados ao longo de muitos anos. Afirma-se que o "modelo" soviético de socialismo havia esgotado as suas potencialidades de desenvolvimento, tornando-se necessário proceder a reformas radicais. Querem comentar?

RK – É natural que perante um passo atrás tão tremendo as pessoas tendam a reagir com exagero na avaliação das suas causas. Não havia crise nenhuma na União Soviética, havia problemas, mas não uma crise…

P - Mas para a maioria das pessoas é uma evidência de que só uma profunda crise poderia provocar tal catástrofe...

RK – Acho que podemos sintetizar o nosso ponto de vista do seguinte modo: não foi a doença que matou o socialismo mas sim a cura. Ao contrário do que muitos pensam, não havia sinais de uma crise: não havia desemprego, inflação, manifestações, etc.

Mas isto não significa que não houvesse problemas. É claro que os havia, principalmente no plano econômico, muito deles agravados no período de Bréjnev, cuja liderança se caracterizou por uma passividade e falta de vontade para enfrentar os problemas. Neste sentido podemos dizer que houve uma espécie de "estagnação", apesar de não gostarmos desta palavra, já que significa ausência de crescimento, o que não corresponde à verdade.

P - Os problemas econômicos agravaram-se a partir de que altura?

TK – A taxa de crescimento da economia começou a abrandar a partir da época de Khruchov, passando de 10 a 15 por cento ao ano para cinco, quatro e três por cento. Houve uma clara desaceleração, mas continuou a observar-se um crescimento respeitável segundo os padrões capitalistas, o que permitiu elevar continuamente o nível de vida na União Soviética. Em 1985 o nível de vida tinha atingido o seu ponto máximo.

No plano das nacionalidades, não se observavam conflitos ou contradições nacionais relevantes entre os povos da União Soviética. Havia problemas, dificuldades, mas não uma crise.

No plano internacional, a URSS estava sob pressão do imperialismo norte-americano. A administração Reagan aumentou a pressão militar, econômica e diplomática. Também identificámos problemas no interior do partido que exigiam reformas. Mas a questão principal era outra.
Só com Gorbatchov a direita triunfou.

P - Se, como afirmam, o socialismo não estava em crise, qual a origem das reformas destruidoras realizadas no final dos anos 80 na URSS?

TK - Ao longo da história da União Soviética digladiaram-se sempre duas tendências na política soviética: uma ala de direita, que defendia a incorporação de formas e idéias capitalistas, e uma ala de esquerda que apostava na luta de classes, num partido comunista forte e na defesa intransigente das posições da classe operária.

De resto, encontramos estas duas correntes mesmo antes da revolução de Outubro. Os mencheviques, por um lado, e os bolcheviques por outro. Mais tarde esta luta é polarizada por Bukhárin e Stálin, Khruchov e Mólotov, Bréjnev e Andrópov, Gorbatchov e Ligatchov. Toda a história da URSS pode ser vista à luz da luta entre estas duas correntes. No entanto, só com Gorbatchov a ala direita obteve um triunfo completo.

RK – Bréjnev, com a sua política de estabilidade de quadros e o seu receio de fazer ondas, deixou uma direção extremamente envelhecida e permitiu que se agravassem vários problemas na economia e na sociedade.

A carência de alguns produtos, sobretudo os de alta qualidade, o desenvolvimento da "segunda economia", a corrupção de dirigentes do partido, tudo isto desagradava às pessoas. Quando Gorbatchov prometeu resolver estes problemas, quase toda a gente concordou. Parecia que finalmente tinha aparecido alguém com vontade de mudar as coisas para melhor.

P - Todavia, alguns apontam como causas do colapso a degeneração do partido comunista, o fato de o trabalho coletivo ter sido substituído a dada altura por um pequeno círculo de dirigentes e mesmo por um só dirigente individualmente; a democracia partidária ter sido estrangulada por um sistema burocrático centralizado; a indesejável fusão e confusão entre as estruturas do partido e do Estado; o afastamento do partido das massas; o fracasso da democracia socialista que era apresentada como um tipo superior de democracia. De acordo com esta tese, o povo soviético foi despojado do poder político e isso foi fatal para o socialismo. Concordam?

TK - A visão de que a União Soviética sofria de um déficit democrático e de um excesso de centralização está muito espalhada entre socialistas reformistas, sociais-democratas, historiadores burgueses e mesmo entre alguns comunistas, mas, na nossa opinião, é uma visão errada e exagerada dos problemas da democracia soviética.

Apesar de alguns problemas, a democracia soviética tinha uma grande vitalidade. Cerca de 35 milhões de trabalhadores participavam diretamente no trabalho dos sovietes, que eram instituições de poder que tomavam decisões efectivas, 163 milhões de trabalhadores estavam sindicalizados, o partido tinha 18 milhões de militantes, a democracia tinha outras instituições como as seções de cartas do leitor em todos os jornais, as organizações de mulheres e de jovens.

É verdade que todas estas instituições tinham insuficiências, poderiam funcionar melhor e de forma mais efetiva, mas não é verdade que fossem instituições de fachada.

As pessoas que atacaram o nosso livro acreditam, na sua maioria, que a falta de democracia e o excesso de centralização foram as causas do colapso soviético. Curiosamente, este sempre foi o principal argumento da burguesia para difamar o regime soviético muito antes da chegada de Gorbatchov. Na nossa opinião é incorreto acusar a democracia soviética de ter levado ao colapso.

RK – Muitas dessas críticas radicam na concepção burguesa de democracia. Na verdade a União Soviética sempre foi acusada de não ter uma democracia burguesa, de não ter partidos concorrentes. Todavia, as formas de democracia socialista, sem serem perfeitas, eram sob muitos aspectos muito mais ricas do que a democracia burguesa.

Penso que o recente conflito na Geórgia nos fornece um exemplo a este respeito. Na antiga União Soviética, a Ossétia do Sul era um território autónomo onde as minorias étnicas tinham as suas escolas, língua, cultura.

Após a desagregação da URSS, a "democracia" georgiana aboliu o estatuto de autonomia dos ossetas, o que agravou as tensões e desembocou numa guerra na região.

TK – Houve razões históricas que determinaram que na URSS apenas houvesse um partido. Logo a seguir à revolução os restantes partidos combateram o poder soviético, os socialistas revolucionários abandonaram o governo e tudo isso levou a que apenas ficassem os bolcheviques.

A maioria dos países socialistas europeus tinha vários partidos, embora o papel dirigente do partido da classe operária fosse salvaguardado. A existência de um só partido acentuou a idéia de fusão entre o partido e o Estado, mas não vemos que isso possa ter constituído uma causa do colapso.

P - Mas as insuficiências da democracia soviética não terão impedido o povo de defender as conquistas revolucionárias, a URSS e o socialismo?

TK – Esse é o principal argumento dos que afirmam que havia um déficit democrático. Porque é que o povo não defendeu o socialismo? Perguntam dando como resposta a falta de democracia e o excesso de centralização.

Em primeiro lugar, não é verdade que não tenha havido
resistência. Houve, basta lembrar que, no referendo de 1991, a maioria esmagadora dos soviéticos (75 por cento) votou a favor da manutenção da URSS.

Por outro lado, para percebermos porque é que essa resistência não foi suficientemente forte para derrotar a contra-revolução, temos de ter em conta o seguinte: Gorbatchov e Iákovlev, ao mesmo tempo que prometiam o aperfeiçoamento do socialismo, com mais liberdade e democracia, destruíram num curto espaço de tempo as instituições por meio das quais a base do partido e o povo podiam expressar a sua vontade.

A organização do partido foi desmantelada, os jornais e todos os meios de informação foram entregues a anticomunistas. De repente desapareceram os mecanismos e formas habituais de expressão democrática popular.

P - Regressando à economia, ficou-nos da perestróika a idéia de que o excesso de centralização, de planificação e de burocracia foram os causadores dos atrasos no desenvolvimento econômico. Alguns acrescentam que houve uma estatização exagerada da economia, que as diferentes formas de propriedade deveriam ter sido mantidas e que o papel do mercado foi claramente subestimado durante o processo de construção do socialismo. Qual é o vosso ponto de vista?

RK – Penso que temos de começar por fazer a seguinte observação que ninguém contesta: a propriedade social dos meios de produção na União Soviética permitiu os mais rápidos ritmos de crescimento industrial jamais registrados em qualquer época da história. Isso ocorreu nos anos 30, mas também a seguir à guerra até meados dos anos 50. Em quatro ou cinco anos, a União Soviética conseguiu recuperar da devastação provocada pela Segunda Guerra Mundial, que deixou em ruínas um terço das cidades e um terço das indústrias.

Por tudo isto, nunca pensámos que a propriedade estatal, a centralização e a planificação pudessem ter causado o colapso. Mas havia algumas questões que precisavam de ser explicadas.

P - Porque é que o crescimento começou a declinar nos anos 60 e 70. A economia continuava a crescer, mas qual era a razão da desaceleração? Os críticos da planificação centralizada viram aqui a demonstração das suas teses…
Talvez as enormes proporções atingidas pela economia colocassem verdadeiros problemas e dificultassem essa planificação?

RK – Sim, é certo que a expansão da economia tornou a planificação numa tarefa mais complexa. Todavia, a conclusão a que chegámos aponta em sentido contrário, ou seja, foi a erosão da planificação e o florescimento da "segunda economia" que colocaram entraves ao crescimento econômico na URSS.
Não foi portanto a subestimação do papel do mercado, mas antes as medidas tomadas para o seu alargamento que desviaram recursos da economia socialista.

TK - Todas as sociedades socialistas têm mercados. A própria União Soviética sempre teve um mercado para o consumo privado. No entanto, as reformas econômicas de Khruchov não só descentralizaram a planificação como introduziram alguns mecanismos de mercado na economia e formas de concorrência entre as empresas.

As reformas de Kossiguin [primeiro-ministro da URSS entre 1964 e 1980] traduziram-se em cada vez maiores concessões ao modo de pensar capitalista.

Dos cinco institutos mais importantes e influentes de economia política soviéticos, três estavam nas mãos de economistas pró-capitalistas do tipo de Aganbeguian, por exemplo.

Os principais setores da inteliguentsia, incluindo os economistas, exerciam importantes pressões sobre o governo. Este foi um processo que se desenvolveu ao longo de 20 anos, não aconteceu tudo de uma vez.

P - Para alguns a perestróika tinha boas intenções mas falhou. No vosso livro, afirmam que esta foi a grande oportunidade para as forças anti-socialistas avançarem. Qual foi a responsabilidade e que intenções reais teve Gorbatchov em todo este processo?

TK – Apesar das suas posições oportunistas, não pensamos que Gorbatchov tenha agido conscientemente logo de início para trair o socialismo e restaurar o capitalismo.

Ao contrário de Andrópov, que era profundo e um marxista-leninista genuíno, Gorbatchov era um brilhante ator, mas uma pessoa superficial, sem grande preparação teórica.

Quando se deslocou politicamente para a direita sob a influência de Iákovlev*, descobriu que o imperialismo o aprovava, que os elementos corrompidos do partido concordavam com ele, especialmente aqueles ligados à segunda economia que defendiam o setor privado, e aos poucos foi acelerando as reformas neste sentido.

A dado momento Gorbatchov tomou a decisão consciente de que não era mais um comunista, mas um social-democrata, não acreditava mais na planificação, na propriedade social dos meios de produção, no papel da classe operária, na democracia socialista, queria que a União Soviética se transformasse numa Suécia ou algo parecido.

O oportunismo, o abandono da luta foi um processo gradual que se tornou evidente em 1986. Alguns dirigentes do partido ofereceram determinada resistência, como foi o caso de Ligatchov**, mas mesmo este tinha fraquezas, embora fosse de longe melhor homem do que Gorbatchov. Ligachov foi apanhado de surpresa.

Ele próprio afirmou que havia duas formas de corrupção, uma que há muito todos sabiam que existia, e à qual queriam pôr fim quando assumiram o poder em 1985; e uma outra que surgiu no espaço de um ano e meio como uma forte vaga de pressão, vinda da "segunda economia" e das organizações mafiosas florescentes.

P - Como puderam esses setores emergir com tal força na sociedade socialista?

TK – A "segunda economia" alcançou uma expressão importante em dois períodos da história da URSS: o primeiro foi durante a Nova Política Econômica (NEP) dos anos 20 que permitiu o desenvolvimento do capitalismo, sob controlo estatal dentro de determinados limites.

Esta foi uma opção consciente do Estado socialista tomada provisoriamente para fazer face à situação de emergência causada pela guerra civil. Em 1928-29 a NEP foi superada de forma decidida.

No entanto, dirigentes do partido como Bukhárin defenderam a manutenção da NEP apresentando-a como a via mais adequada para alcançar o socialismo. Esta corrente foi derrotada pela maioria do partido liderada por Stálin, que justamente lembrou que a NEP fora definida por Lênin como um recuo necessário, porém temporário. E apostaram na planificação centralizada e na propriedade social dos meios de produção.

Mas este período dos anos 20 ficou marcado não só pelo florescimento do capitalismo e dos setores marginais e criminosos, mas também pelo alastramento de uma ideologia de direita, anti-socialista. Ou seja, podemos ver claramente uma correspondência entre a base material e a ideologia.

O segundo período foi mais prolongado e gradual. Teve início em meados dos anos 50, após a morte de Stálin. Khruchov foi a primeira peça deste quebra-cabeças. Em muitos aspectos, não todos, teve desvios de direita e quando estes foram demasiados houve uma correção. Veio Bréjnev, mas este detestava mudanças, queria estabilidade, e apesar das disputas entre as alas esquerda e direita os problemas continuaram a acumular-se.
‘O socialismo é uma construção consciente’.

P - Foi então o acumular de problemas na época de Bréjnev que condicionou as reformas dos anos 80?

TK – Nos anos 80, os problemas eram evidentes para todos, mas a questão-chave que se colocava era qual das duas tendências tradicionais no partido os iria resolver: a tendência de direita ou a tendência de esquerda?…
Infelizmente já conhecemos a resposta…

RK – Mas Bréjnev não teve apenas aspectos negativos. No plano internacional obteve a paridade militar com os Estados Unidos e ajudou os movimentos revolucionários em várias regiões do mundo.

Este esforço no plano militar e no plano da solidariedade internacionalista exigiu importantes recursos que não puderam ser utilizados para suprir necessidades domésticas.

Talvez também por esta razão que, durante este período, se tenha fechado os olhos ao setor privado ilegal que se desenvolvia nas bordas da economia socialista. Esta espécie de "pacto" com a "segunda economia" permitiu o surgimento de uma camada que ficou conhecida como "os milionários de Bréjnev", que eram pessoas que fizeram fortunas através de redes de corrupção toleradas pelo poder.

TK – Bem, trata-se de um setor ilegal, por isso não há números oficiais, o que torna o seu estudo difícil…

RK – Mas é verdade que se trata de um fenômeno ignorado e não reconhecido pela literatura marxista. A "segunda economia" foi sempre vista como um resquício do capitalismo que desapareceria à medida do avanço do socialismo.

Contudo, há alguns estudos que nos mostram que o seu peso estava longe de ser negligenciável. Por exemplo, é interessante comparar o período de Bréjnev com os primeiros meses da direção de Andrópov em termos de processos criminais instruídos por atividades econômicas ilícitas.

Verificamos que nos anos de Bréjnev não houve praticamente condenações pela prática deste tipo de crime, mesmo quando os casos chegaram a ser julgados em tribunal. Com Andrópov esta situação alterou-se radicalmente. Muitas pessoas foram condenadas nesse período.

P - No vosso livro, não dedicam muito espaço à análise do chamado "relatório secreto" apresentado ao 20.º congresso do PCUS por Khruchov sobre o "culto à personalidade", mas referem a necessidade de reavaliar o período comumente designado por "stalinismo", notando que enquanto tal não for feito, os comunistas continuarão prisioneiros do passado. Querem explicar?

RK – Quando começámos a escrever o livro essa questão colocou-se e tivemos de tomar uma decisão. Decidimos que não iríamos entrar no tema quente de Stálin. Há muitos preconceitos enraizados e, sobretudo, há muitas coisas que não conhecemos suficientemente para podermos desmontar idéias feitas e diariamente repetidas sobre Stálin.

A única coisa que fizemos, ou pelo menos tentámos, foi abrir a porta a este assunto. Nós não temos todas as respostas sobre Stálin e a sua época, e seria um erro pensar que temos. Há muitos aspectos históricos e políticos que precisamos de absorver e compreender.

P - Contudo, praticamente todas as conquistas do socialismo que enumeram na introdução do livro foram alcançadas em particular durante os anos 30, sob a direção de Stálin…

TK – É um fato, mas tivemos de fazer uma opção entre tratar toda a questão ou apenas o que consideramos ser a questão-chave. Por acaso, a maioria dos ataques ao nosso livro por parte de marxistas ou pseudo-marxistas, sociais-democratas ou comunistas revisionistas centraram-se precisamente na questão de Stálin.

Não contestaram nada do que dissemos sobre Gorbatchov nem sobre a "segunda economia", apenas nos censuraram por sermos demasiado brandos com Stálin e por não termos reconhecido que Stálin era um monstro, um louco, um carniceiro. Esta questão no Partido Comunista dos Estados Unidos é particularmente sensível.

P - Mas se a tese do vosso livro está correta, então as políticas de Stálin terão sido as mais corretas e as únicas que podiam garantir a construção do socialismo e defender as conquistas revolucionárias.

RK – O ódio a Stálin é tão cego e intenso que alguns críticos do nosso livro dizem que estamos errados e insistem que Stálin foi a causa do colapso da URSS.

P - Vem a propósito uma reflexão vossa sobre a importância do fator subjetivo no socialismo. Segundo afirmam, o papel dos dirigentes é mais decisivo no socialismo do que no capitalismo. Porquê?

TK – O capitalismo cresce enquanto que o socialismo é construído. No livro utilizamos uma metáfora em que comparamos o capitalismo a uma jangada a descer um rio. As possibilidades de dirigir a jangada são reduzidas, ela é arrastada pela força da corrente e apenas se podem fazer algumas pequenas correções na trajetória.

Nesta metáfora, o socialismo é um avião, o qual apesar de ser um meio de transporte incomparavelmente superior exige ser pilotado por uma equipa bem preparada científica e tecnologicamente, capaz de compreender e aplicar conscientemente as leis da ciência.

Ou seja, apesar de o avião ser um sistema superior é vulnerável num sentido em que a jangada não o é. Isto não significa obviamente que devamos abandonar o avião e voltar à jangada, assim como não podemos voltar ao tempo das cavernas, apesar de as nossas casas poderem ruir.

*Alekssandr Iákovlev — responsável a partir de 1985 pelo departamento de propaganda do PCUS, torna-se membro do CC do PCUS em 1986, responsável pelas questões da ideologia, informação e cultura.
Sobe ao politburo em junho de 1986 e é sob proposta sua que são nomeados os diretores dos principais jornais e revistas do país que passam a defender abertamente posições antisocialistas (os jornais Moskovskie Novosti, Sovietskskaia Kultura, Izvestia; as revistas Ogoniok, Znamia, Novi Mir, entre outros). Faz publicar uma série de romances de escritores dissidentes e anti-soviéticos, bem como cerca de 30 filmes antes proibidos. Em agosto de 1991 anuncia a decisão de abandonar o PCUS.

** Iegor Ligatchov – membro do politburo entre 1985 e 1991, foi um dos impulsionadores da campanha anti-álcool (1985-87) e, mais tarde, assumiu-se como um opositor às reformas de Gorbatchov.


Pesquisa, copy e edição – Flavio Deckes

O Sigilo Bancário Suiço em Perigo

Entrevista com Konrad Hummler, dono do banco mais antigo da Suiça

No ano de comemoração dos 500 anos de Calvino, a crise financeira e moral fazem aproximar o capital e a Igreja. Segundo o banqueiro privado Konrad Hummler, tanto as instituições financeiras como os clientes cederam às "tentações" dos lucros – o pecado seria então "mútuo".

Nos últimos tempos muito se escutou que a crise financeira atinge menos os verdadeiros banqueiros privados do que executivos dos grandes bancos. Razão: os executivos reagiram à promessa de altos salários e bonificações.

Já os banqueiros privados arcam com sua própria fortuna para cobrir os possíveis prejuízos das instituições que dirigem e, por isso, suas qualidades morais seriam superiores. Segundo Konrad Hummler, essa característica é parte da herança da tradição calvinista da Suíça.

Essa herança é mantida viva por Konrad Hummler, no Banco Wegelin, de St. Gallen. A mais antiga instituição bancária do país está apenas alguns passos distante do famoso mosteiro da cidade, um símbolo nacional do catolicismo. Muitos suíços desconhecem, porém, que St. Gallen já abrigou uma comunidade protestante, que data dos tempos do reformador Ulrich Zwingli.

swissinfo: Há pouco tempo o senhor, como banqueiro, participou de um debate no contexto do ano de Calvino com teólogos e economistas da Universidade de St. Gallen. O tema foi Deus, dinheiro e como lidar com este na ótica cristã. Isso é possível?

Konrad Hummler: O Reformador genebrino Calvino, cujo 500° aniversário é comemorado este ano, é considerado internacionalmente o precursor do capitalismo. Pois, ao contrário da Igreja católica, ele aceitava negócios a créditos no século XVI.

Mas ele condicionava a cobrança de juros a elevados quesitos morais. Honestidade, fidelidade aos contratos, discrição e também parcimônia foram considerados por muito tempo no exterior como virtudes dos suíços e de seus banqueiros, antes dos tempos atuais em que esses banqueiros perderam algo da sua aura.

P - Com o modelo de negócio dos nossos banqueiros, não teria também o modelo de Calvino perdido muito da sua aura?

R - Tenho lido isso na imprensa helvética desde que comecei a acompanhar os noticiários negativos relativos ao UBS e a outros bancos suíços. Porém não acredito pessoalmente nisso.

O que vivemos na Suíça nos últimos vinte e cinco anos foi uma invasão da atitude anglo-saxã. Ela nos trouxe hábitos, idéias de negócios e uma moral de negócios que nos eram estranhas.

Por exemplo, o costumeiro modelo de compensação com bonificações elevadas no setor de banco de investimento e que se tornou prática nos bancos helvéticos. Isso não tem nada a ver com Calvino.

Esse modelo de banqueiro não combina muito bem com a mentalidade suíça. Esta é menos orientada ao chamado "boom and bust" (altos e baixos) anglo-saxão, ou seja, a uma sucessão cíclica de grandes sucessos, seguidas depois por quebras e demissões.

P - O que é o modelo suíço de fazer negócios?

R - O modelo suíço sempre foi aquele com a constância. Por isso a Suíça, como base do Calvinismo, continuará a existir como importante praça financeira internacional.

É falso acreditar que a autorização dada por Calvino há quinhentos anos atrás de cobrar juros sobre empréstimos seja equivalente a uma carta branca para uma forma desenfreada de gerir bancos.

Mas o fato é que os bancos suíços perderam um pouco do espírito de Calvino, sobretudo em Genebra, a cidade do reformador, onde muitos banqueiros acabaram tendo grandes prejuízos depois de especular bastante. Também na cidade natal de Calvino, com a exceção de um grupo relativamente pequeno de banqueiros privados – e que por isso são fiadores das suas instituições com sua própria fortuna –, houve muitos bancos que cederam às tentações dos lucros elevados. Afinal, estes haviam quase se tornado normais nos últimos tempos.

Porém eles o faziam também a mando da sua clientela. Por isso considero esse um pecado "mútuo".
Atualmente os banqueiros não têm tido muito perdão, pelo menos na opinião pública. O que diria Calvino nessa situação? Eles seriam perdoados por Deus? Calvino tinha sua própria teologia na questão do perdão divino. Ela já foi muito criticada, mas seria agora bem oportuna. Segundo Calvino, o sucesso nos negócios é um sinal do perdão divino e não do mérito próprio.

A consequência disso é que o peso do indivíduo em uma empresa se relativiza, inclusive suas pretensões como, por exemplo, as salariais.

Ou, como falamos hoje no jargão dos banqueiros: um executivo-chefe dificilmente atinge sozinho o return on equity (retorno sobre o patrimônio) da sua empresa. Por isso, Calvino iria dizer hoje em dia: seja mais modesto!

P - Teria Calvino uma receita contra o aumento desses altos e baixos dos ciclos econômicos?

R - Dentro do contexto de que o sucesso é originado através do perdão divino, a perspectiva calvinista acaba ganhando uma certa resistência contra crises econômicas e financeiras, na minha opinião.

"Deus deu. Deus retirou – salvo seja o Senhor", dizia Jó. E esse pensamento encontrou sua continuação em Calvino."

Estou convencido de que essa resistência aos choques mais contribuiu em longo prazo para o sucesso econômico dos países protestantes do que as muito citadas diligência e capacidade de fazer dinheiro.

Isso, pois vejo na resistência aos choques um correspondente à capacidade de assumir riscos. Sociedades que não são capazes de assumir riscos e que não aceitam choques, não são bem-sucedidas em longo prazo.
Investidores de sociedades abertas aos riscos sabem, por outro lado, que eles podem ganhar. Afinal, eles sabem lidar com os choques.

P Se existe uma gestão "calvinista" de bancos, qual seria então sua estratégia de investimento?

R - Uma gestão "calvinista" de bancos seria esclarecer com antecedência e de forma transparente a um cliente quais são os riscos que estará correndo ao investir seu dinheiro.
Nós fomos o primeiro banco no país a tentar ilustrar e quantificar o risco durante os aconselhamentos estratégicos de investimento.

Konrad Hummler nasceu em St. Gallen em 1953, onde freqüentou também a escola. Ele estudou Direito em Zurique e Economia em Rochester, nos Estados Unidos.
De 1981 até 1989 trabalhou para o UBS e foi assistente pessoal do presidente do conselho administrativo do banco, Robert Holzach.
Em 1989, Hummler tornou-se diretor do banco privado Wegelin & Co., com sede em St. Gallen. Essa instituição fui fundada em 1741 e, por isso, é o mais antigo banco da Suíça. Konrad Hummler se tornou co-proprietário do banco em 1991. Dessa forma ele é fiador do banco com sua fortuna pessoal.


Sigilo bancário:
uma questão de
vida ou morte


Para os jornalistas Werner Vontobel e Viktor Parma, a maior parte dos suíços pode viver muito bem sem o sigilo bancário. No livro Suíça, um Estado Vil ? , os dois debatem as origens e consequências de um dos pilares da praça financeira helvética. Swissinfo conversou com um dos autores na redação do jornal semanal "Sonntagsblick".

Um dos mitos mais divulgados sobre o sigilo bancário é de que este teria sido criado para proteger os bens de judeus dos tentáculos nazistas. "Falso", é o que afirmam Werner Vontobel e Viktor Parma.

No seu recém-lançado e polêmico livro Suíça, um Estado Vil?, os dois jornalistas dão a resposta: o segredo bancário foi ancorado na lei depois que expoentes da República de Weimar (na Alemanha) se opuseram veementemente à evasão fiscal massiva apoiada pelos bancos helvéticos na época.

Essas e outras revelações são feitas em 223 páginas, um trabalho de reportagem iniciado quando ainda não havia sinais no horizonte de que o sigilo bancário e outros paraísos fiscais no mundo seriam atacados de todas as direções frente a uma das mais graves crises financeiras vividas nos últimos tempos.

swissinfo: A Suíça é um "Estado vil"? O que o senhor quis dizer com o título do seu livro?
Werner Vontobel: A Suíça é um Estado simpático, mas que em todo caso tem traços de vilania e que, com seu sigilo bancário e uma agressiva política de competitividade fiscal, defende seus interesses de uma forma desconsiderada.
P - Por que a pressão sobre a Suíça e o sigilo bancário aumentou nos últimos tempos? R - Em primeiro lugar: a distribuição de renda e de fortuna se tornou claramente mais excludente em quase todos os países. Ou seja, uma parte cada vez maior do substrato fiscal está nas mãos de alguns poucos ricos que têm mobilidade. Isso reforçou a competitividade fiscal e, por consequência, aumentou ainda mais os danos que ela causa. Em segundo: os países necessitam urgentemente de dinheiro para salvar suas economias do colapso.

P - Qual é a origem do sigilo bancário? Por que ele é tão importante para a Suíça?
R - O sigilo bancário não é um problema em si. Problemático é que o fato dele ser vendido de forma agressiva para ressaltar os aspectos positivos da Suíça como local de investimento com o objetivo de atrair estrangeiros ricos - e seu dinheiro - para o país. Se o sigilo bancário é realmente importante à Suíça, é uma questão que deixo aberta. Seguramente ele contribuiu para estabelecer a Suíça como centro global para a administração de fortunas. Niklaus Blattner, ex-diretor da Associação Suíça dos Banqueiros, acredita hoje que o país não precisa do sigilo bancário para ser bem-sucedido na administração de fortunas. Talvez ele tenha razão.

P - É verdade que o sigilo bancário foi criado para proteger as pessoas, sua esfera privada e suas posses?
R - Seguramente tem algo de verdade nessa afirmação. Porém também é verdade que o sigilo bancário tinha desde o início o propósito de atrair dinheiro estrangeiro para a Suíça.

P -Por que a atual discussão sobre o fim ou reforma do sigilo bancário na Suíça é tão acalorada? Até que ponto o país depende tanto do sistema financeiro e de suas especificidades como o sigilo bancário?
R - Eu também não entendo completamente. A administração de fortunas, afinal, é apenas uma parte relativamente pequena do setor, que ocupa menos de 1% de todos os suíços. Além disso, sabe-se através dos autos judiciais dos Estados Unidos que o UBS conduziu os negócios de sonegação fiscal de uma forma bem maléfica.

No início, as pessoas na Suíça estavam furiosas especialmente com o UBS. O ministro alemão das Finanças, Peer Steinbrück, conseguiu agora com suas declarações arrogantes transmitir a muitos suíços a impressão de estarmos em guerra econômica com outras praças financeiras.

P - Como países em desenvolvimento são atingidos pelo sigilo bancário?
R - Retiramos deles dinheiro dos impostos e mesmo se este não é aplicado corretamente nos países atingidos, a qualidade de vida neles é atingida fortemente por estas perdas. Isso é uma questão de vida ou morte, enquanto nosso padrão de vida através desse excedente de receitas sobre a administração de fortunas não aumenta de forma palpável, se é que aumenta.

Muitos pleiteiam na Suíça que apenas o princípio da competitividade fiscal está sendo defendido e que o problema, na verdade, estaria nos outros países de tributação elevada como Alemanha e França.

P - Qual a sua opinião sobre o tema?
R - Existe uma verdade nisso, mas não cabe aos suíços melhorar as leis fiscais ou a administração de outros países. Além disso, percebemos aqui dentro da Suíça que os paraísos fiscais internos têm uma taxa de tributação muito menos elevadas do que Berna ou Zurique. A competitividade fiscal beneficia pela sua natureza os pequenos cantões contra os grandes. Isso tem pouco a ver com habilidade ou eficiência.

Há pouco o jornal NZZ revelou que mais de dois trilhões de francos de clientes privados são administrados por bancos suíços. Uma grande parte desse dinheiro não foi declarada ao fisco nos países de origem. Uma flexibilização do sigilo bancário não poderia ter graves conseqüências para a Suíça? As conseqüências possivelmente não seriam graves sequer para os administradores de fortuna. Será que a pessoa empobrece se, ao invés de cinco, ganhar apenas três milhões?

P - Em um contexto de crise financeira e econômica – e agora também fiscal – qual será o futuro da praça financeira helvética?
R - Ela irá encolher um pouco. As margens do setor de administração de fortunas não serão tão gordas como antes. Isso é parte da chamada transformação estrutural.

P - A Suíça e outros países europeus aceitam agora as regras da OCDE. Será que o modelo do paraíso fiscal já pertence ao passado? Mas o que o senhor diz de Dubai, Qatar, Ilhas do Canal ou o Estado de Delaware, nos Estados Unidos?

R - Na Suíça cogita-se agora introduzir o modelo de "trust". Também outros paraísos fiscais estão sob pressão. Naturalmente a Suíça pode apontar que ainda existem outros paraísos, mas isso não vai adiantar muito. Além disso, é normal que a pressão sofrida pela Suíça seja maior. Afinal, somos, com grande distância, o maior paraíso fiscal do mundo. Se tentarmos agora criar novos refúgios fiscais, então essa pressão irá aumentar mais ainda. Para mim essas idéias não passam de reações infantis de teimosia.

* Werner Vontobel, 63 anos, trabalha como jornalista especializado em economia para o semanário dominical "SonntagsBlick".

SIGILO BANCÁRIO
TEM HISTÓRIA


O sigilo bancário nasceu juridicamente em 1934, depois da crise ocasionada pela quebra da bolsa de Nova York em 1929. No mundo em crise entre as duas guerras mundiais, os Estados europeus, decididos a limitar a fuga de capitais para o estrangeiro, iam direto ao assunto. Em 1932, a polícia francesa invadiu a agência do Banco Comercial de Basiléia em Paris e confiscou os dados de milhares de clientes.

Essa violação da legendária tradição de discrição cultivada há séculos pelos banqueiros suíços foi um dos acontecimentos que levou a Confederação Helvética a inscrever o sigilo bancário na lei federal sobre os bancos.

Na realidade, o sigilo bancário garante aos clientes dos bancos suíços que as informações que lhes concernem serão mantidas confidenciais e não serão transmitidas a pessoas físicas, às administrações nem ao fisco. Porém a Suíça manteve uma distinção que caracteriza a especificidade de seu sigilo bancário: a diferença entre evasão e fraude fiscal.

O contribuinte que, intencionalmente ou por negligência, deixar de declarar, por exemplo, parte de sua fortuna, é passível apenas de multa. Em contrapartida, aquele que falsifica documentos (um atestado de salário ou balanço) pratica uma escroqueria que é punível pelo código penal com pena de prisão ou multa. Sob requerimento de um juiz, o sigilo bancário pode ser suspenso em caso de fraude.

Devido a essa distinção, as autoridades helvéticas só aceitam a colaboração administrativa e judiciária com outros países em caso de fraude, não de evasão fiscal.

Em 13 de março de 2009, o governo suíço anunciou que futuramente prestará assistência administrativa a outros países não só em casos de fraude fiscal, como também, "caso por caso" e por "petição concreta e justificada", quando há suspeita de sonegação de impostos.

Pesquisa, copy e edição – Flavio Deckes, com swissinfo

Transformações: matrizes do séc. XXI


Por Estrella Bohadana*

Transformações: Matrizes do Século XXI é o legado com que René Armand Dreifuss, um dos mais brilhantes cientistas políticos da atualidade, falecido em maio de 2003, agracia o leitor. Trata-se de sua obra póstuma.

Com quase 700 páginas, o autor do clássico 1964: A Conquista do Estado, publicado também pela Editora Vozes, em 1980, aumenta o acervo de suas fascinantes pesquisas, apresentando, mais uma vez, um pensamento de fina prospecção, agudeza e ousadia, sempre disposto a analisar e a denunciar os diferentes liames que tecem os fios do poder.

Mergulhando nas várias articulações das corporações que constituem o sistema de produção global, em Transformações: Matrizes do Século XXI, Dreifuss desvenda os vínculos entre as diferentes corporações e o modo pelo qual estas alimentam as “tecnognoseonomias” e os pólos motores de desenvolvimento tecnológico e de produção – estes de alcance global e matricial – e por eles são alimentados.

Em “Transformações: Matrizes do Século XXI”, Dreifuss apresenta uma investigação rica e minuciosa das mutações tecnológicas, permitindo aprofundar dois conceitos importantes, elaborados em sua obra “A Época das Perplexidades”, de 1996, publicado pela Editora Vozes, hoje na 4a edição, a saber: o de capacitador “teleinfocomputrônico satelital” e o de “tecnobergs”.

No que se refere ao capacitador “teleinfocomputrônico satelital”, esse aprofundamento conceitual revela-se quando o autor demonstra que, como potência, o capacitador retroalimenta as mais diversas descobertas científicas, além de se constituir em potente suporte viabilizador de um novo modo de produção e de novas organizações sociais da produção, ambos sinergeticamente transnacionalizados e realizando-se de maneira global.

A partir dessa formulação, o autor afirma que, possibilitados pelos sistemas de comunicação digitalizada, o planeta ingressa em uma forma de existência que supera distâncias, propiciando inovações na mobilidade e na agregação social, facilitando, para alguns grupos sociais, a vinculação sistemática, constante, ampla e profunda dos “muito distantes” (em termos de personalidade, cultura e geografia), ao mesmo tempo que promove a segregação de outros grupos –basta verificar a diminuta participação dos países que constituem o eixo Sul-Sul.

Esses sistemas, por sua vez, ao provocar seqüências de interação pontual, serial e circunstancial, tornam-se manifestações que se processam tanto dentro de perímetros nacionais, estando espacialmente localizadas, quanto em espaços transfronteiriços, como eventos desterritorializados.

Dessa maneira, tais sistemas desempenham papéis essenciais como insumo e como produto final; além disso, simultaneamente, constituem-se como instrumento de produção e de serviço e operador em tempo real.

Tendo como traço marcante sua difusão mundial em curtíssimo intervalo de tempo, tratam-se de tecnologias aplicadas em todas as atividades do planeta, vinculadas completamente ao existir humano e afetando todas as funções societárias. Assim, estando a comunicação no comando do cotidiano, o complexo capacitador “teleinfocomputrônico satelital” delineia também outro paradigma cognitivo.

Aprofundado o conceito do capacitador, Dreifuss, de forma engenhosa, demarca um novo estádio para designar os “tecnobergs”, que passariam a determinar os processos de modificações substanciais nos horizontes e no sentido de vida, reformulando as relações entre estados, delineando uma nova heterotopia econômica transnacional e uma nova ordem internacional e transfronteiriça do conhecimento, ambas acopladas a uma heterarquia político-estratégica.

Esboçam-se, portanto, os elementos constituintes de um outro modo de organização social da produção globalizada, que demanda uma profunda reorganização empresarial, com conseqüências no comércio entre as nações, o que contribui para o desemprego estrutural, em seu formato atual, e para o lazer ampliado de grupos seletos.

Ademais são estimuladas novas dimensões da pesquisa e da utilização da ciência e da tecnologia, direcionando o processo de produção de conhecimento, de desenvolvimento de saberes e destrezas, bem como de sua aplicação, fortalecendo, como “gnoseonomia”, os entornos da “oikonomia”.

No cerne dos “tecnobergs”, as corporações, que se configuravam em função de uma racionalidade bipolar (doméstico-multidoméstico, local-multinacional) de instalação das indústrias e dos serviços, passam a ser globalizadas.

Estes “tecnobergs” alavancam três fenômenos multifacetados, simultâneos, diferenciados e que se reforçam mutuamente: a mundialização de estilos, usos e costumes (metanacional); a globalização tecnológica, produtiva e comercial (transnacional); e a planetarização da gestão (supranacional).

Esses fenômenos (também conceituados em A Época das Perplexidades) são discutidos agora a partir do amplo acoplamento do processo de concentração de controle de propriedade dos meios de produção e comercialização, que se dá em cada segmento dos produtos de consumo de massa.

Esse processo de concentração é visto no livro por meio das fusões, alianças e aquisições, em movimentos transnacionais (intra, inter e multissetoriais) e apoiado na interação potencializadora dos variados conhecimentos, interligando ainda mais os processos de mundialização e de globalização.

Nessa nova dinâmica, ao concentrar a propriedade e o controle dos agentes, oligopolizar os meios de pesquisa e a produção por meio de fusões e incorporações – por alianças e joint ventures, por aquisições e absorções – a nova fase do processo de mundialização e de globalização assegura a produção transnacional, realizada e centrada no que será definido pelo autor como corporações estratégicas.

De maneira inusitada, Dreifuss demonstra como as corporações estratégicas, interagindo por meio de matrizes, passam a definir suas core competences, num processo concentracionista que desmonta a lógica anteriormente prevalecente de grandes conglomerados de capital com investimentos diversificados, estipulando agora uma nova relação entre ciência e tecnologia como eixo de refocalização das cadeias produtivas.

Ao mesmo tempo, o autor apresenta como se dá a “transição-em-rede das redes” para um tecido de pesquisa e produção transnacional, muito mais complexo em seu desenho produtivo e de comercialização, sustentado por conhecimentos e agindo como concentrador de capacidades. Para Dreifuss, neste cenário, configura-se uma sucessão infindável de compras, vendas, desmantelamentos e integrações complementares.

Como desdobramento, forma-se, também, uma “heterotopia tecnoprodutiva” multinacional, transitória em tempo e em referências, configurando rapidamente uma equivalência “gnoseogeonômica”, ambas determinadas pelo entrelaçamento de focos indutores de ciência e tecnologia, com a correspondente concentração de conhecimento e disponibilidade para realizações de ponta, através de pólos motores tecnoprodutivos e de plataformas terceirizantes e quarteirizantes de produção e comercialização.

A integração global de operações empresariais e atividades tecnoprodutivas, afirma o autor, compreende não só a luta por mercados e sua partilha, mas o desenvolvimento de estratégias corporativas de participação nos mercados, buscando formas de compartilhá-los.

A lógica da infonomia ou da “gnoseonomia” dos “tecnobergs” e da formação de sociedades de informação é a da primazia das core competences e da determinação de padrões a partir delas, com base na dinâmica de integração de meio, mensagem e conteúdo. Partindo de cada segmento, procura-se expertise nos outros, assim como complementação.

De maneira brilhante, encontramos em Transformações: Matrizes do Século XXI o modo pelo qual as corporações estratégicas do complexo capacitador de conteúdo buscam a fusão ou a absorção de corporações que possam viabilizar suas opções de comando e indução científico-tecnológica (ou seja, que lhes permitam dominar os vários segmentos de conhecimento que o compõem) e de predominância tecnonômica no espaço multimidiático e multifuncional do emergente sistema teleinfocomputrônico satelital de produção e de serviços.

As empresas procuram controlar o formato, os meios e o conteúdo.
E, finalmente, o autor, retomando os conceitos de mundialização, globalização e planetarização revela a maneira como a nova dinâmica galgada por esses fenômenos, bem como as tendências à configuração de hierarquias de conhecimento mutáveis, “heterotopias-em-recomposição” de pesquisa e produção, poliarquias supranacionais em gestação e “heterarquias político-estratégicas” convergentes implicam uma multiforme e complexa emergência e constituição de uma nova realidade.

Realidade paradoxal, posto que – concomitantemente a esse processo – se configura uma outra realidade, na qual uma significativa parcela da população mundial se encontra alijada dos benefícios de tamanha concentração de conhecimento gerados pelos “tecnobergs”.

Portanto, é imperativo que se repense outros caminhos que possibilitem um novo caminhar, a fim de devolver à humanidade a crença de que é possível fazer do planeta Terra um habitat digno da nossa existência.

E, em memória a René Armand Dreifuss, que acreditou na possibilidade de o homem transformar a realidade, nada como lembrar a frase com a qual encerra o seu Transformações: Matrizes do Século XXI: “E o jogo continua...”

René Armand Dreifuss - A Época das Perplexidades - Mundialização, Globalização e Planetarização: Novos Desafios, Editora Vozes, 2004.

* Estrella Bohadana é filósofa, doutora em História dos Sistemas de Pensamento – Escola de Comunicação da UFRJ –, autora de vários livros e artigos e integrante do corpo docente do Mestrado em Educação e Cultura Contemporânea da UNESA – Rio de Janeiro. Esposa de René Dreifuss e responsável pela editoração da obra póstuma, incluindo “Transformações: Matrizes do Século XXI”, publicado pela Editora Vozes, em 2004.

http://www.espacoacademico.com.br

Pesquisa, copy e edição – Flavio Deckes

Financeirização do noticiário


Nos cadernos de economia da grande imprensa, é possível verificar um amplo domínio de temas relacionados ao mercado financeiro.
A constatação é da jornalista Paula Puliti, que analisou, em sua pesquisa de doutorado, os jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo no período de 1989 a 2002. Comportamento do mercado de ações, medidas do Banco Central, reformas tributárias, contas públicas e rigidez fiscal foram alguns dos assuntos mais enfatizados nos jornais.

Tal aspecto no jornalismo econômico foi chamado pela pesquisadora de “financeirização do noticiário”.

A pesquisa fez parte de sua tese de doutorado, orientada pelo professor Bernardo Kucinski e defendida em novembro de 2009 na Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP.

Paula afirma que essa financeirização começou a ficar evidente já em 1990, quando os profissionais do mercado financeiro passaram a ser as principais fontes nos cadernos de economia. Entre eles, estão: operador de mercado de ações, banqueiros, economistas de bancos, FMI e Banco Mundial. Fontes do mercado financeiro predominaram em 73,25% das 2340 notícias lidas

Complementar a esse fato, a pesquisa mostrou que esses profissionais, a partir de 1992, deixaram de aparecer exclusivamente em matérias sobre investimentos e passaram a influenciar nas ações do governo, conquistando espaço na opinião de temas de política econômica.

Dez anos depois, no primeiro semestre de 2002, segundo a pesquisa, eles já representavam 52,2% das fontes consultadas pela Folha e o Estadão.
A jornalista destaca que o próprio contexto da época propiciou isso, com o Consenso de Washington – conjunto de medidas econômicas formuladas em 1989, em Washington, famosa por introduzir o receituário neoliberal do FMI – e com a adoção de um modelo econômico neoliberal por parte do governo brasileiro.

Devido aos jornais reservarem espaço privilegiado ao governo, eles acabam absorvendo a visão econômica deste, como explica Paula: “Se você considerar matérias do alto de página, onde estão as principais matérias dos jornais, quem são as principais fontes? O governo. Você tem o governo trazendo para o noticiário os temas de interesse dos bancos”.

Capacitação
A pesquisa mostra que outro fator que influenciou a financeirização dos jornais é o esforço que o mercado financeiro fez para expandir sua influência nos meios de comunicação. “O mercado financeiro se capacitou comunicacionalmente para ser enxergado pelos jornalistas como a grande voz em termos do que é bom para a economia do País”, diz Paula.

Os bancos se capacitaram investindo em assessoria de imprensa e em media training – treinamento dado em empresas para saber como se comunicar com os órgãos de imprensa –e enviando freqüentemente relatórios aos jornalistas.

Paula lembra que, com a redemocratização no País, após 1989, os bancos buscam “ganhar destaque na sociedade”, diz a jornalista. Uma das formas mais eficaz para atingir essa meta foi com os bancos levando seu papel e seu ponto de vista à imprensa.

Paula recorda que na década de 1980 a grande imprensa ainda dava considerável destaque às indústrias e, ainda que em menor grau, aos sindicalistas. Essas e outras vozes foram sobrepostas pelo mercado financeiro na década de 1990.

Na opinião da jornalista, isso causou somente prejuízos para o jornalismo econômico. “Com a financeirização do noticiário, não vejo nada de positivo em um jornalismo que se vende a uma idéia”, justifica Paula. E completa:

“A imprensa tem papel democrático a exercer no mundo. Esse papel democrático implica, entre outras coisas, dar vozes a diferentes autores sociais. Se você tem um jornalismo financeirizado, quer dizer, se você tem apenas um grupo falando em nome de toda a sociedade, você foge desse caráter democrático”.

Pesquisa

Paula analisou, respectivamente, 1340 e 1000 notícias dos cadernos de economia do Estadão e da Folha. As notícias, que são do período de 1989 a 2002, não foram lidas de modo a comparar o conteúdo de cada jornal, mas somente para quantificar a presença das fontes e temas relacionados ao mercado financeiro.

Da amostra de 2340 notícias, em 73,25% predominavam fontes do setor financeiro.
Além disso, a jornalista complementou seu trabalho com 10 entrevistas, que incluem economistas do mercado financeiro, jornalistas de redação, acadêmicos e banqueiros. As entrevistas serviram para estabelecer a relação entre os dados obtidos e o comportamento das organizações.

Por Felipe Maeda Camargo
pulitipaula@hotmail.com

Copy e edição - Flavio Deckes