17.1.10

A Crise Global Explicada


Como
explicar
a crise?

Pelo consumismo desenfreado que levou a sociedade americana a contrair dívidas várias vezes acima de sua capacidade de pagamento?

Pela ganância dos bancos, que buscaram ganhos a qualquer preço?

Pela omissão das autoridades monetárias, que deixaram a bolha de crédito se expandir e não acompanharam com a atenção devida o que acontecia nos mercados?

Pela nova etapa da globalização, surgida no bojo do desenvolvimento tecnológico, que permitiu ao dinheiro rodar o mundo sem barreiras, tornando obsoleta qualquer forma de controle? - Revista Wired

Opiniões

Noam Chomsky - Linguista e filósofo

A socialização dos custos e dos riscos, com a privatização dos lucros, é uma característica básica da economia capitalista

O fascismo foi derrubado, o bolchevismo foi derrubado e o corporativismo também pode ser.

Grande parte da economia que se diz capitalista depende profundamente de um setor estatal dinâmico no que se refere à inovação, ao desenvolvimento e outras formas de socialização de riscos e custos.

As raízes da crise atual foram plantadas na década de 70, com o fracasso do sistema de Bretton Woods, no pós guerra, com a financeirização da economia e a movimentação contra qualquer regulamentação, baseadas em dogmas quase religiosos, a respeito da "eficiência dos mercados".

Transações não levaram em conta as consequências. No caso das grandes financeiras, isso levou a um grande menosprezo pelos riscos - o risco sistêmico foi ignorado.

Desde o fim do sistema de Bretton Woods houve repetidas crises financeiras, mas elas se deram em países pobres e portanto não importavam, na verdade ofereciam às corporações americanas uma chance de adquirir ativos a preços baixos.

A crise atual é importante porque afeta os ricos e os poderosos e é muito difícil de estancar. Ninguém conhece a profundidade da crise.

E ninguém que conheça história econômica se surpreenderá com o fato de que as medidas que estão sendo tomadas pelos ricos para resolver o problema de suas próprias crises são o oposto das ditadas aos pobres quando estes enfrentavam uma crise.

Operações de ajuda são muito comuns, não apenas no sistema financeiro, mas também no industrial. As novidades de hoje se devem apenas à escala do desastre.

A alternativa a uma política que faz o público subsidiar os ricos e poderosos seria a democratização da sociedade e da economia.

Mas isso exigiria uma ampla compreesão do público e um ativismo que hoje é escassamente visível no mundo.

Ignacy Sachs - economista

Agora atravessamos um momento histórico. Em 80 anos, a humanidade foi chamada três vezes a se debruçar sobre a equação qual Estado para qual modelo de desenvolvimento. A primeira vez foi a partir da crise de 1929. Tivemos como resultado o socialismo, o nazismo, o New Deal rooseveltiano.

A segunda ocasião aconteceu no fim da II Guerra. Naquele momento formou-se um consenso em torno de três idéias-força: um Estado pró-ativo no campo econômico e social, o pleno emprego como objetivo e valorização do planejamento, pilares de sustentação do welfare-state, o estado de bem-estar e previdência, como formulou Keynes.

O choque entre dois sistemas políticos levou o capitalismo a se reformar, especialmente pela ascenção do socialismo.

Ou seja, o sistema entrou numa fase de crescimento rápido, impulsionado pelos processos de reconstrução abertos com o fim da guerra, pelo Plano Marchall, isso entre 45 e 75. O que marca a mudança de paradigma nos anos 70? O desencanto com o socialismo.

Francis Fukuyama - economista e filósofo

Acabou o movimento que há 30 anos prega a não-intervenção no mercado. Agora começa uma nova fase com mais intervenções do Estado.

O que acho interessante nesta crise é que desta vez foi o mal gerenciamento nos EUA que a alavancou. Eu fiquei muito surpreso e não poderia imaginar que Wall Street sofreria esse colapso total.

Não sei o que vai acontecer no resto do mundo, mas acho que os EUA estão caminhando para uma recessão bem longa, porque passamos os últimos 30 anos gastando mais do que tínhamos, especialmente nos últimos oito anos.

Será muito difícil recomeçar o processo de crescimento com toda essa dívida. E isso vai ter um impacto no resto do mundo, porque os EUA serviram como o motor do consumo mundial.

É o fim do reaganismo, não do capitalismo, de um movimento que há 30 anos prega a não intervenção no mercado. Não é o fim do capitalismo, mas um movimento pendular geracional nas políticas e nas idéias.

Agora vamos começar uma nova fase, com mais intervenção do Estado. De novo, não é o fim do capitalismo, é só mais um ciclo da economia e da história.

Alain Touraine - sociólogo

Não acredito que vivemos apenas uma crise profunda, mas o fim de uma época, que passou por um grande movimento de desenvolvimento.
Mais rapidamente do que imaginávamos, tudo acabou tendo aspectos também negativos.

A partir de 71 houve o abandono dos princípios da Conferência de Bretton Woods, e em 73 e 74 a primeira grande crise de petróleo, quando assistimos todos esses sistemas desaparecerem, substituídos pelo neoliberalismo que obteve um triunfo quase imediato. Neste momento, trata-se também do chamado "liberalismo extremo".

Agora, ao contrário, assistimos uma volta a Keynes, o fim dessa confiança ilimitada no valor dos mercados. A palavra de ordem era a desregulamentação, agora voltamos a ter como palavra de ordem a regulamentação, mas não na mesma forma anterior.

Acredito que haverá uma grande mudança de geração de altos executivos de bancos e de seguradoras. Será uma vassourada brutal nos aproveitadores do sistema.

A longo prazo, outras transformações parecem estar sendo aceleradas. A primeira é que o Ocidente, até então o centro mais forte da economia mundial, isto é, uma parte da Europa e os EUA, cedeu lugar à China.

Com os EUA em recessão, a influência chinesa não cessa de aumentar, o que não é ocasional, pois se desenvolve a longo prazo. Os chineses podem paralisar a economia americana simplesmente apertando um botão mesmo que não possam ir longe, pois são seu melhor cliente.

Nouriel Roubine - professor

É comum que se compare a crise atual com a Grande Depressão dos anos 30, mas o termo de comparação deve ser a década perdida do Japão nos anos 90.

Essa crise é mais financeira do que a que levou à Grande Depressão, embora as consequências econômicas sejam igualmente severas, com o colapso dos bancos e a queda nos números de emprego.
No Japão, houve uma grave crise após o estouro da bolha imobiliária, e a estagnação durou muitos anos.

Porém, um ponto semelhante da crise com a de 30 é o protecionismo que essa insegurança causa.
Começam a aparecer indícios de que o próximo setor a sofrer fortemente com a crise é o de cartões de crédito. Num cenário recessivo, as pessoas perdem seus empregos e simplesmente param de pagar as contas.

Falei recentemente sobre a falência do modelo anglo-saxão e isso gerou polêmica. Acredito muito na economia de mercado, que é o melhor modelo econômico possível.

O governo deve ser responsável por fornecer educação, saúde, bens públicos e regular os mercados em uma medida adequada.

O modelo americano, especificamente, demonstrou problemas graves, especialmente no aspecto da regulamentação. Então minha crítica não é ao capitalismo, nem à economia de mercado, mas a uma versão particular disso.

O bom sinal é que já há um reconhecimento dos erros na atual administração. O governo está intervindo na economia, tentando encontrar o equilíbrio entre nem muita nem pouca interferência.

A discussão não é mais ideológica, é sobre fazer a coisa certa. Por exemplo, a estatização temporária de bancos foi uma experiência bem sucedida em vários países e há lições a serem aprendidas sobre o que funciona ou não.

O que já ficou claro é que a atual abordagem do problema nos EUA não tem funcionado.

Minhas previsões eram tachadas de pessimistas e catastróficas, mas se mostraram realistas. O cenário está pior do que eu havia previsto.

Podemos lembrar que por muitos meses os governos tiveram uma postura de negação do tamanho do problema, dizendo que ele não era tão grave, que tudo estava sob controle, que era possível esperar um pouco mais para o mercado se curar.

John Gray - professor de economia

A atual convulsão dos mercados mundiais é mais do que uma crise econômica, embora de enormes dimensões.
É um sinal de que o modelo de globalização promovido pelos EUA nos 20 anos depois do colapso comunista está se desintegrando.

Nos dias de grande otimismo que se seguiram à queda do Muro de Berlim, e até os últimos meses do ano passado, muitos estavam absolutamente confiantes de que o futuro veria o avanço constante do capitalismo de estilo americano.

Surgiu uma série de grandiosas teorias - o fim da história, a ascensão do mercado como Estado, o boom prolongado, a grande moderação e o mundo nivelado -são algumas das mais conhecidas, expressando a convicção predominante de que a globalização disseminava livres mercados pelo mundo.

Entretanto, havia muitos sinais de que a história se deslocava em outra direção.

Muito antes do colapso soviético, a China desencadeara o maior e mais rápido processo de industrialização da história, sob os auspícios de um tipo de capitalismo de Estado, no qual o governo detinha o controle das commanding heights, as instituições financeiras que determinam o desenvolvimento de um país.

Na Rússia, o planejamento central entrou em colapso com o regime soviético, mas, depois de um período de quase anarquia, surgiu um capitalismo baseado na exploração das matérias-primas, controlado pelas oligarquias e por elementos do serviço secreto, em lugar de uma economia de mercado segundo a linha americana

ou ocidental. As economias emergentes da Índia, do Sudeste Asiático e da América Latina, expandiram-se rapidamente, mas conseguiram isso tomando caminhos próprios, diferentes, e não seguindo os modelos desenvolvidos em outras partes do mundo.

Essa diversidade devia ser prevista. A globalização nunca promoveu um modelo econômico único. No final do século 19, ela alimentou vários tipos de capitalismo: uma versão do livre mercado na Inglaterra, o protecionismo nos EUA e as variedades russa e alemã, nas quais o Estado tinha uma função de direção.

A globalização, no fundo, não passa de uma industrialização no plano mundial, impulsionada por novos meios de comunicação, um desdobramento que deverá produzir resultados divergentes em diferentes partes do mundo.

A concepção de que a globalização seja um movimento voltado para um sistema econômico mundial moldado segundo o capitalismo anglo-americano é uma ilusão popular, mas pôde florescer enquanto o boom perdurou.

Os acontecimentos dos últimos meses acabaram com a idéia de que o capitalismo desregulamentado, dirigido pelo mundo das finanças dos últimos anos, era um modelo universal de desenvolvimento econômico.

O fato é que a filosofia do livre mercado foi totalmente desacreditada. Seria inteiramente equivocado imaginar que tenha surgido uma alternativa confiável capaz de orientar uma resposta global coordenada a essa crise.

Hoje somente a China tem a combinação necessária de mercados capitalistas e uma economia planificada, e, ironicamente, é para a China que o Ocidente está se voltando na esperança de salvar o modelo de livre mercado da globalização.

Este não é o fim do capitalismo, do livre mercado ou da globalização. O que estamos testemunhando agora é o início incerto de um novo período da história, no qual o modelo anglo-americano é apenas uma das várias versões de capitalismo que conformarão o mundo.

Joseph Stiglitz - Nobel de Economia

Vamos recordar o que causou esses apuros.

Os bancos se meteram, e meteram nossa economia, em encrencas ao se alavancar excessivamente - o que significa que eles usaram relativamente pouco capital próprio e captaram empréstimos substanciais para comprar ativos imobiliários de altíssimo risco.

No processo, usaram instrumentos de alta complexidade, como obrigações de dívida colateralizadas.

A perspectiva de alta compensação incentivou os administradores a serem míopes e assumirem riscos excessivos em vez de fazerem empréstimos prudentes com o dinheiro.

Os bancos cometeram todos esses erros sem ninguém saber, em parte porque muita coisa do que estavam fazendo era financiamento "fora do balanço".

Modernidade - mundo insustentável


Por Alberto Teixeira da Silva

No rastro da razão iluminista, o projeto modernizador do capitalismo exprime uma tendência inexorável: a reprodução dos bens materiais e espirituais da burguesia, comolocus da acumulação para além das fronteiras nacionais, consagrando o mercado mundial como arena privilegiada do processo civilizatório.

A modernidade-mundo apresenta nuances progressivas da construção avassaladora do capitalismo na era da globalização. Do Estado-Nação como emblema da nova racionalidade política aos contornos da emergente sociedade global multidimensional, a modernidade é refundada e permamentemente descontruída como base cognitiva do mundo no século XXI.

Dos escombros da primeira modernidade (industrial) e suas promessas de progresso e felicidade, emerge uma modernidade de risco, distribuidora de malefícios e turbulências. Assim Ulrich Beck assinala está passagem logo no primeiro capítulo do seu livro La sociedad del riesgo:

“Na modernidade avançada, a produção social de riqueza é sistematicamente acompanhada por uma produção social de riscos. Portanto, os problemas e conflitos de partilha da sociedade de carência são substituídos pelos problemas ou conflitos que surgem da produção, definição e repartição dos riscos produzidos de maneira cientifico- técnica”.

Estamos envoltos numa época histórica marcada por outra modernidade, radicalizada pela revolução nanotcnológica, convergência da parafernália comunicacional, consumismo frenético de bens e expansão ilimitada das forças produtivas. Sob o signo das rápidas transformações e mudanças paradigmáticas está se globalizando um capitalismo multifacetado e imprevisível.

Para compreender a intensidade da crise atual de dimensões planetárias, é fundamental refletir o imbróglio dos tempos hodiernos, configurando redemoinhos e dúvidas projetadas pela sociedade global.

A interdependência crescente entre blocos econômicos, sistemas produtivos transnacionais e as diferentes esferas da experiência humana tem sido a marca registrada da sociedade contemporânea, interligando saberes e processos societais.

Na década de 1960, o sociólogo canadense Marshall McLuhan cunhou a metáfora ‘aldeia global’ para designar mudanças e percepções derivadas da revolução dos meios de comunicação, sobretudo a partir da televisão, antevendo aquilo que outro sociólogo, o espanhol Manuel Castells iria definir no final do Século 20, a partir das novas tecnologias – o paradigma informacional.

Ondas ininterruptas de inovações e insights movem comportamentos, estilos de vida, padrões de produção e consumo, recriam-se identidades e simbolismos para designar uma era de conexões e interatividades globais, potencializada pela internet e redes (networks) tecidas no ciberespaço. Esses acontecimentos trazem uma sensação crescente e estonteante de transições fundamentais na aurora do terceiro milênio.

Como lembra Milton Santos, geógrafo brasileiro cujo reconhecimento ultrapassa linhas territoriais, intelectuais e lingüísticas, “acelerações são momentos culminantes na História, como se abrigassem forças concentradas, explodindo para criar o novo”.

A anatomia dessa admirável modernidade líquida (para usar a expressão emblemática de Zymunt Bauman) reside numa sociedade prenhe de inseguranças, transfigurada por laços efêmeros, sociabilidades fragilizadas e contraditórias, engravidada de riscos cruciais e desafios decisivos. Estamos na encruzilhada de um modelo civilizatório perdulário que nos empurra para o abismo, embora se acredite na luz no fim do túnel.

A dinâmica geopolítica mundial hegemonizada por um seleto grupo de países espelha uma arquitetura de governança assimétrica em termos de recursos de poder, estágios de desenvolvimento e perspectivas de futuro, ignorando a construção de pilares éticos globais que garantam a consolidação de valores perenes e efetivamente civilizatórios, como a paz, tolerância, democracia e cooperação para o desenvolvimento duradouro equitativo e justo entre os povos.

Desordens climáticas marcadas por catástrofes socioambientais – fenômenos contrastantes e arrasadores como enchentes, secas, invernos e verões rigorosos e extremos de temperatura, que ora castigam as regiões norte, nordeste e sul do Brasil, assim como outros países em proporções diversas – aliam-se aos dramas cotidianos da violência, pobreza, corrupção, stress urbano, marginalidade e degradação sociopolítica

Estas situações caóticas estão se reproduzindo no espaço global (que inclui o local) pela lógica da racionalidade instrumental, colonizada pela visão econômica do crescimento ilusório e de modelos supostamente progressistas fundados no padrão de bem estar ocidental. Enfim, um cenário que retrata a barbárie contemporânea. A modernidade do século XXI tornou-se perigosa e insustentável num mundo gravitado por desesperanças e incertezas.

* Alberto Teixeira da Silva é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas alberts@superig.com.br