30.3.10

O Conhecimento Livre Sob Ameaça



O que é, como foi revelado e quais os desdobramentos do
acordo internacional secreto
que pode bloquear as trocas pela internet,
proibir os medicamentos genéricos e
ampliar as desigualdades entre países ricos e pobres.
Há alternativas?



A 25 de março, o governo de Barack Obama tornou público o esboço de um acordo internacional espantoso.

Denominado ACTA – as iniciais em inglês de Acordo Comercial Anti-Falsificação [1] –, o documento tem objetivo muito mais vasto.

Incide sobre a circulação de bens simbólicos – a atividade que mais mobiliza a criatividade humana no presente, e também a que mais desperta expectativas de lucros.

Mas o faz no sentido do controle. Ao invés de incentivar e qualificar a expansão das trocas livres, restringe e mercantiliza o intercâmbio de cultura, conhecimento, marcas e fórmulas necessárias ao combate das doenças.

Recorre, para tanto, a métodos totalitários e policialescos, que ferem em múltiplos pontos a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Permite violar correspondência sem ordem judicial e intervir na comunicação pessoal. Encarrega os provedores de acesso à internet e os serviços de hospedagem de sites de vigiar e punir os internautas.

Criminaliza, em especial, a troca não-comercial de arquivos via internet, o que ameaçaria milhões de pessoas com penas de prisão [2]. Atinge o software livre – ainda que os programadores que o constroem não reivindiquem direito a propriedade.

Como frisa James Love, no Knowledge Ecology International, um dos site envolvidos na mobilização internacional sobre o tema, o ACTA enquadra, sob o conceito de “escala comercial”, não apenas o que tem “motivação direta ou indireta de ganho financeiro”, mas “qualquer sistema de grande amplitude”.

Em outras palavras, as grandes corporações que comercializam produtos culturais querem colocar fora da lei aqueles que os oferecem gratuitamente....

É uma ameaça, a longo prazo, até mesmo a serviços como o Google [3].

Estabelece penas que ultrapassam a pessoa do suposto infrator, violando um princípio jurídico que vem do direito romano [4].

Bloqueia a circulação internacional de medicamentos genéricos, que considera frutos de violação à propriedade intelectual das indústrias farmecêuticas. [5].

Submete os serviços públicos de alfândega a interesses e determinações de empresas privadas. [6].

Procura frear a emergência dos países do Sul do planeta e a possibilidade de uma divisão mais justa da riqueza — congelando a divisão internacional do trabalho hoje existente.

* * *
Debatido sigilosamente há três anos, o rascunho do acordo só veio à luz depois de uma série de pressões de grupos da sociedade civil e de alguns parlamentares.

Mas a falta de transparência nunca foi completa. Sucessivas baterias de reuniões internacionais foram desenhando o ACTA. A elas tiveram acesso os governos de um pequeno grupo de países: Estados Unidos, Japão, Suíça e União Européia, desde 2007; Austrália, Canadá, Coréia do Sul, Emirados Árabes, Jordânia, México, Marrocos, Nova Zelândia e Singapura, numa segunda etapa.

E embora excluíssem os Parlamentos, os representantes do Poder Judiciário e a sociedade civil, os governantes sempre tiveram a companhia dos grandes lobbies empresariais [7] — o que bastaria para atestar o caráter não-republicano e ilegítimo da proposta.

* * *
O ACTA é o lance mais recente de uma grande disputa civilizatória, que emergiu na virada do século e marcará, agora está claro, as próximas décadas.

Por um lado, a economia do imaterial e a internet abrem, entre os seres humanos, possibilidades inéditas de liberdade, autonomia, des-hierarquização, invenção e criação colaborativas de riquezas.

Na direção oposta, setores do capital procuram capturar esta riqueza comum. Para tanto, investem inclusive contra as liberdades conquistadas já na época da Revolução Francesa.

Mecanismos para restringir a soberania dos Estados e sociedades, impedindo-as em especial de “interferir” sobre a “autonomia” das grandes empresas, foram propostos pelo Acordo Multilateral de Investimentos (AMI).

Articulado até 1998, na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômica (OCDE), ele exigia pagamento de indenizações aos “investidores”, sempre que os Estados adotassem medidas que pudessem resultar em redução de lucros – uma legislação trabalhista ou ambiental mais protetoras, por exemplo.

Foi também negociado em sigilo, mas ao final vencido por uma articulação da sociedade civil. Ela se espraiou por diversos países – o que era, então, incomum – e ganhou força ao denunciar o caráter oculto, e portanto antidemocrático, da iniciativa da OCDE.

Eram tempos de forte supremacia das idéias neoliberais. Por isso, a derrota do AMI pareceu mero acidente de percurso. Mecanismos muito semelhantes foram incluídos, pela Organização Mundial do Comércio (OMC), na convocação de uma rodada de negociações internacionais para liberalizar as trocas internacionais – a chamada Rodada do Milênio.

Ela previa, além disso, enorme pressão para que os Estados desarticulassem suas redes de serviços públicos (Educação, Saúde, Água, Saneamento, Transportes e tantos outros, em muitos casos gratuitos) e os transformassem em mercadorias.

Naufragou em Seattle, em dezembro de 1999, diante de uma mobilização internacional maciça, de características até então desconhecidas e diretamente precursora dos Fóruns Sociais Mundiais.

Dez anos depois, o ACTA é a nova investida.

Chega num cenário internacional muito distinto: as idéias neoliberais perderam terreno; a colaboração via internet faz parte do quotidiano (em especial, entre as gerações mais jovens); países como China, Brasil e Índia ganharam força e iniciativa nos debates e fóruns de decisão mundiais.

Para fazer frente à essa realidade, o novo acordo precisa expor ainda mais seu caráter autoritário. E já não é possível negociá-lo abertamente em nenhuma instituição internacional – nem mesmo a OMC.

Por isso, o ACTA tem sido debatido em reuniões semi-informais, entre governos e grupos empresariais.

O próximo debate será na Nova Zelândia, entre 12 e 16 de abril.

A própria aparição do texto-base só tornou-se inevitável depois que o Le Monde Diplomatique francês teve acesso a vazamentos e publicou, em sua edição de março último, um artigo, disponível no site Outras Palavras.

Ainda assim, subestimar o acordo seria um erro grosseiro. Embora seu prestígio tenha recuado nitidamente, as idéias neoliberais ainda influenciam governos e parte da opinião pública – inclusive porque, em oposição a elas, há valores e certas políticas – mas ainda não um projeto de sociedade alternativo.

Por isso, leis nacionais com sentido muito semelhante ao do ACTA foram aprovados há poucos meses na França (lei Hadopi [8] e nos Estados Unidos (DMCA [9]).

No Brasil, a Lei Azeredo, de idêntico sentido, chegou a ser votada no Senado, sendo revertida graças a intensa mobilização da sociedade, que convenceu o presidente da República.

Há poucos dias, o próprio presidente dos EUA, para cuja eleição a liberdade na internet foi fundamental, deu declaração enfática em favor do acordo. “Vamos proteger de maneira agressiva nossa propriedade intelectual (…) [Ela] é essencial para nossa prosperidade, e será cada vez mais, ao longo do século. (…) Eis porque os Estados Unidos utilizarão todo o arsenal de instrumentos disponíveis (…) e avançarão para novos acordos, em nome dos quais se articula a proposta do ACTA [10]”.

* * *
Uma possível estratégia para enfrentar o acordo deveria envolver diversas ações paralelas.

A primeira é a denúncia da ameaça. Por se tratar de um acordo internacional, ela deve ser igualmente planetária. Em diversas partes do mundo começam a surgir articulações da sociedade civil em torno do tema.

Entre elas, destacam-se no momento La Quadrature du net (“A quadratura da net” - www.laquadrature.net), na França; Knowledge Ecology International (Ecologia do Conhecimento Internacional -www.keionline.org), nos Estados Unidos; e PublicACTA (http://publicacta.org.nz), na Nova Zelândia, que inclusive prepara um encontro internacional da sociedade civil, paralelo à próxima reunião internacional de articulação do ACTA, em Wellington.

A forte presença de um movimento de resistência nos países ricos deixa claro que a luta em favor da liberdade de conhecimento precisa envolver também as sociedades civis e organizações políticas do Norte.

Construído num fórum informal, o acordo não poderá ter aplicação imediata – nem mesmo quando os países participantes chegarem a um acordo, numa de suas próximas reuniões.

O caminho traçado por seus promotores, nas condições atuais, passa provavelmente pela aprovação de leis derivadas do acordo em parlamentos nacionais dos países do Norte. Lá, como deixa claro o discurso de Obama, os interesses econômicos dos que se julgam titulares de propriedade intelectual são mais fortes.

O passo seguinte seria transpor os mesmos dispositivos para o Sul. O caminho mais fácil para tanto são os acordos de comércio bilateral.

Por meio deles, os países ricos podem, por exemplo, abrir seu mercado a certos produtos agrícolas, reivindicando em contrapartida grandes concessões na área de propriedade intelectual.

Para prevenir esta armadilha há, além do debate de idéias, um recurso institucional: é a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI). Parte do sistema ONU, ela foi bastante criticada, no passado, por reproduzir algumas das distorções comuns às organizações multilaterais [11].

Porém, debate, há alguns anos – e aqui está outro desdobramento da nova conjuntura internacional – uma "Agenda do Desenvolvimento".

Proposta inicialmente por Brasil e Argentina, com forte apoio da Índia, inclui certas medidas com sentido oposto ao da ACTA. Rejeita explicitamente a penalização das trocas de arquivos por internet. Quer limitar e abrir exceções ao "direito" de patente [12].

No entanto, a resistência parece ser apenas parte da resposta. Numa época em que dois futuros opostos parecem possíveis – a regressão a formas de controle totalitário e as lógicas de colaboração pós-capitalistas —, é preciso desenvolver a segunda alternativa.

O que seriam os novos direitos civis e sociais, na época da internet? Como estender a todos os seres humanos o acesso permanente e rápido à rede — hoje privilégio de uma minoria?

Mais: como fazer deste direito não apenas a possibilidade de receber o conteúdo criado por outros; mas, também, o de participar ativamente da produção coletiva de cultura e conhecimento?

E, além da internet: num tempo em que o saber converteu-se na principal fonte de riquezas, e é por natureza construção coletiva, como promover a distribuição das riquezas geradas por ele?

Se uma mobilização internacional já se esboça, em resposta ao ACTA, talvez ela possa se propor, também, a responder de modo colaborativo a estas questões.

Notas

[1] Anti-Counterfeiting Trade Agreement
[2] Em 10 de março de 2010, James Murdoch, herdeiro do grupo de mídia que leva seu sobrenome recomendou, numa entrevista coletiva em Abu Dhabi, deixar de ser “amistoso” com os consumidores e punir os “ladrões” de filmes como se punem os ladrões comuns
[3] Um dos esboços do ACTA exige que as legislações dos países signatários punam também “a incitação, assistência ou cumplicidade” ao que chama de “falsificação”, ou “pelo menos, os casos de assistência à ’falsificação’ [aspas nossas] voluntária de marca e de direito autoral, ou direitos conexos, e de pirataria em escala comercial”. O texto parece escrito sob medida para atingir buscadores alternativos, como o Pirate Bay. Mas permite enquadrar também o Google
[4] Inspirado na lei francesa Hadopi, o ACTA quer excluir da internet os usuários acusados de trocar produtos culturais "não-autorizados". Para fazê-lo, pretende congelar os endereços IP dos "transgressores". Finge ignorar que um mesmo IP atende a diversos moradores de um mesmo domicílio (adultos ou crianças), sendo frequentemente compartilhado por seus vizinhos e pessoas em trânsito pela área.
[5] Nos últimos anos, medicamentos genéricos, transportados por navios procedentes da Índia e com destino a países africanos, foram bloqueados mais de uma vez em portos europeus. Os produtos retidos eram perfeitamente legais, tanto no país de partida quanto no de chegada, mas autoridades européias consideraram que o trânsito por seus países feria o princípio de propriedade intelectual
[6] Uma das versões do ACTA que veio a público revela: empresas privadas poderão solicitar diretamente às autoridades aduaneiras (sem necessidade de procedimento judicial) a fiscalização e eventual retenção de produtos supostamente falsificados. Fiscais alfandegários terão também atribuição de verificar, reter e em alguns casos destruir produtos “falsificados” e também arquivos eletrônicos (músicas ou filmes “não-licenciados”, por exemplo) armazenados em computadores, pendrives e telefones celulares
[7] Cartéis como a Aliança Internacional pela Propriedade Intelectual (IIPA, em inglês), a Motion Picture Association of America (MPAA, que representa a indústria norte-americana do cinema), a Business Software Alliance (BSA, de programas de cinema), a Business Software Alliance (BSA, de programas de computador não-abertos) e a Recording Industry Association of America (RIAA, para a música) são desde o início construtores privilegiados do ACTA
[8] Parcialmente bloqueada pela corte constitucional francesa, por incompatibilidade com as liberdades individuais, a lei entrou em vigor em novembro de 2009.
[9] Digital Millenium Copyright Act, descrito e analisado em detalhes na Wikipedia, em português, (verbete mais completo)
[10] A fala de Obama, na íntegra, pode ser lida aqui
[11] Informações maiores sobre a OMPI, incluindo críticas a ela, podem ser encontradas na Wikipedia
[12] No Brasil, o Observatório OMPI, do site Cultura Livre faz um ótimo acompanhamento da Agenda do Desenvolvimento. (29/03/2010)

Pesquisa, copy e edição – Flavio Deckes, com biblioteca diplô

A Era Pós Gutenberg terá Jornalismo Democratizado




A convergência digital, a blogosfera e a comunicação
compartilhada não ameaçam apenas a oligarquia
da mídia corporativa.
Também requerem um novo projeto para
democratizar o jornalismo, e outros mecanismos
para remunerar os produtores culturais

Por Antonio Martins

1. Nos últimos anos, graças a certas ferramentas tecnológicas, mas especialmente a algumas mudanças de paradigma, os antigos conceitos de liberdade de informação e propriedade intelectual estão sendo superados.

Em seu lugar, surgem idéias como comunicação compartilhada, inteligência coletiva, fim da passividade do receptor, direito à intercomunicação.

Essas mudanças têm enormes repercussões em nossa vida social, econômica, política e simbólica.
Estão, por sua vez, relacionadas a sinais de que uma outra lógica de organização das sociedades – capaz de superar a que está baseada no lucro e na competição – é possível e necessária.

2. Um dos problemas-chave a resolver é, precisamente, a produção de símbolos — arte, comunicação, literatura — num mundo em que a vida continua sendo comprada e vendida como mercadoria.

Em outras palavras: se queremos que as obras culturais circulem e sejam apropriadas e recriadas por todos; se queremos fazer de cada ser humano um criador cultural, como remunerar o trabalho do artista?

Como permitir que, sendo livre seu trabalho, possa ele alimentar-se, vestir-se, habitar, viajar, equipar-se – em suma, satisfazer suas múltiplas necessidades e desejos.

3. Um dos pontos essenciais para encontrar uma resposta foi oferecido em conferência pronunciada no ano passado, durante o Fórum Cultural Mundial, por Gilberto Gil.

Vivemos num mundo em transição e em transe. São tão profundos quanto os que marcaram a passagem do mundo feudal à modernidade e geraram, entre outros fenômenos, o Renascimento europeu.

4. Alguns dos mecanismos sociais que marcaram a modernidade e representaram, em sua época, liberdade, transformaram-se em prisões. O ser humano medieval recuperou a moeda e ampliou os mercados para se libertar das relações obrigatórias e limitadas que o prendiam à terra, ao senhor, aos afazeres que haviam sido repetidos por seus ancentrais desde muitas gerações.

A cidade e o mercado eram os espaços em que cada um podia oferecer livremente seu trabalho – ou seja, encontrar uma alternativa à obrigação de permanecer no feudo, trocando favores pessoais com o senhor, sempre subordinado, sempre sem liberdade de escolher seu próprio destino pessoal.
A moeda era o que permitia a tal ser humano “livre” ganhar o mundo e comprar sua vida sem o limite dos vínculos de favor.

Quando os mercados, que o ser humano desenvolveu
para se livrar do mundo feudal, passam a dominar seu criador

5. Ocorre que o mercado é, por natureza, um espaço marcado pela competição, pela desigualdade e por um tipo de alienação que leva à hipervalorização do produto e apagamento do produtor.

Se produzo laranjas, ou fios de cobre mais baratos, serei o vencedor. O mercado ignora se meu vizinho é obrigado a lavrar terras mais áridas, ou se as relações sociais na fábrica em que trabalha são mais humanas.

Algo muito semelhante se dava no mundo da indústria cultural, onde os padrões de belo, bom e agradável eram definidos por um sistema onde alguns grandes operadores tinham enorme poder de definir, por exemplo, que estilo de produção cinematográfica, ou que enfoque de cobertura midiática, tinham o poder de encantar ou convencer.

6. No terreno da produção simbólica, o período que vivemos é marcado por duas tendências contraditórias. Alguns fatores tendem a padronizar os produtos de forma cada vez mais intensa.

Garantir a circulação de um jornal diário em papel, na escala e nos padrões de “qualidade” requeridos pelo mercado, exige investimento de dezenas de milhões de reais. A produção cinematográfica tradicional consome parcela cada vez maior do orçamento com publicidade.

7. No entanto, dois fatores combinados servem como contra-tendência formidável, que questiona a própria idéia de mercantilização da produção simbólica.

A primeira é tecnológica: a internet começou, a vários anos, a erodir a receita da indústria cultural. Primeiro, veio o compartilhamento de música, sem contrapartida financeira.

Depois – e ainda mais interessante e transformador – surgiu a possibilidade não apenas de trocar o já pronto, mas de criar em conjunto, a partir de múltiplos pontos do planeta.

8. Estes enormes passos tecnológicos teriam pouco sentido e efeito se não coincidissem com um profundo mal-estar em relação aos paradigmas que marcaram a modernidade – em especial a mercantilização do mundo.

Tem crescido a consciência de que o mercado, embora surgisse como uma ferramenta de libertação do ser humano, se não cotrolado domina seu criador.

Já não somos o que somos, mas o que compramos. O mais interessante é que surgem, em paralelo, alternativas. Afirma-se a lógica dos direitos. Debate-se, nos Fóruns Sociais, a idéia de que certos bens e serviços, necessários para assegurar vida digna, devem ser oferecidos a todos os seres humanos do planeta, independentemente de sua capacidade de pagar por eles.

Acesso à terra, água potável, eletricidade, renda básica da cidadania, saúde de qualidade, educação, internet, bens culturais. A lista vai se refinando, felizmente, e é possível vislumbrar o dia em que essa lógica se desdobrará no direito a viajar para ter contato com novas culturas, ou no direito à psicanálise.

Tecnologia é fator secundário. Conhecimento livre é movido pela
busca de nova lógica social e desencanto com o oligopólio das narrativas

9. É precisamente nesse contexto que surgem o direito à intercomunicação, a inteligência coletiva, o fim da passividade do receptor, o conhecimento livre.

Graças à tecnologia — mais especialmente à busca de um mundo organizado segundo uma nova lógica social —, está se esfacelando um dos grandes instrumentos de dominação da era capitalista: o oligopólio das narrativas e discursos.

Embora partidária do neoliberalismo, a revista Economist apontou, num estudo publicado em meados de 2006, que está se encerrando a era da comunicação de massa.

Iniciada com a invenção dos tipos móveis de Gutemberg, ela foi demarcada pela produção de um volume maciço de bens simbólicos e por um número cada vez mais reduzido de emissores. E

Em seu lugar surge a era da comunicação pessoal e participativa. Sua marca será o poder que uma parcela cada vez maior da humanidade terá para se livrar da condição de mero consumidor, e tornar-se, também, produtor de bens simbólicos.

A transformação será tão profunda que Economist prevê o fim do jornal diário impresso na primeira metade do século atual.

10. A mudança de paradigma, extremamente positiva, cria dois problemas complexos. O primeiro é a necessidade de recriar espaços públicos de debate, para evitar que a multiplicação dos produtores de conteúdo gere apenas um caos multifônico.

O fato de cada ser humano ser um produtor de narrativa e discursos não deve significar que cada um se satisfaça consigo mesmo e dispense o diálogo. Nesse caso, estaríamos diante de uma nova forma de incomunicação e alienação.

Para evitar o risco, é importante criar outros nós na grande rede, certos lugares onde os produtores de símbolos se encontram, se reconhecem e estabelecem trocas. Isso não se faz de forma piramidal, nem com base em relações mercantis, nem sob a batuta de um editor todo-poderoso – mas a partir de recortes e pontos de vista compartilhados por uma comunidade.

No Brasil, um exemplo desbravador é o site de jornalismo cultural Overmundo. Centenas de leitores, muitos dos quais mantêm seus próprios blogs, ou produzem vídeo ou áudio – ou seja, já são produtores de conteúdo cultural – sentem-se atraídos para contribuir também para o Overmundo. Porque surgiu um nó, onde é possível estabelecer diálogos mais amplos.

Lançado em outubro, o Caderno Brasil de Le Monde Diplomatique persegue um objetivo semelhante, no terreno do pensamento crítico e da busca de alternativas políticas. Num primeiro momento, reunirá colaboradores já reconhecidos por sua capacidade de análise, ou por atuar em iniciativas transformadoras e refletir sobre elas.

Numa segunda etapa, como em Overmundo, a participação estará aberta a qualquer leitor que tenha pontos de vista relevantes a expressar.

Uma possibilidade radical: desmercantilizar o trabalho humano,
desvinculando o direito à vida digna de um emprego assalariado

11. O segundo grande desafio é o da remuneração e sobrevivência dos novos produtores de símbolos. De certa maneira, a liberdade de conhecimento e de produção cultural é profundamente utópica, no melhor sentido do termo: o de antecipar um futuro possível.

Ela aponta para a possibilidade da desmercantilização mais radical: a do próprio trabalho humano. Produzir comunicação, cultura ou arte não deve ser algo que dependa de remuneração, mas um prazer e algo inerente à própria condição humana.

Outras atividades, cada vez mais numerosas, deveriam ter o mesmo status: cuidar da natureza, educar as crianças, mostrar nossa cidade a visitantes que não a conhecem. No caso de muitas outras atividades, o desenvolvimento da tecnologia poderia ser visto como um alívio, não como um drama – desde que houvesse outras relações sociais.

Se novas máquinas permitem fabricar computadores empregando muito menos operários, ou se é possível automatizar a coleta de lixo, isso não deveria ser visto como ameaça de desemprego, mas como redução do tempo de trabalho, eliminação das tarefas humanas mais penosas e desagradáveis.

A condição é nos dispormos a imaginar a ultrapassagem da sociedade-mercadoria e do trabalho-mercadoria. Uma decisão-chave é reconhecer que, na época em que vivemos, a garantia de uma vida digna não pode mais estar associada a um emprego remunerado.

Por isso, é tão decisivo o debate sobre a criação de uma Renda Cidadã internacional – e mesmo medidas muito tímidas nesta direção, como o Bolsa-família brasileiro merecem todo apoio.

12. Mas como viveremos nós, imersos nas relações capitalistas? Em primeiro lugar, é preciso afastar a idéia de que uma nova sociedade pode ser construída num único ato, a partir do qual as relações sociais transformam-se por encanto.

Durante muito tempo, teremos de ampliar o espaço das relações de solidariedade e compartilhamento, estando, contudo, obrigados a aceitar as relações de mercado, a vender nossa capacidade de produzir bens simbólicos. Uma grande arte haverá em equilibrar esses dois aspectos de nossa vida social.

13. Isso exige, ao mesmo tempo, imaginar e testar desde agora novas relações. Se o trabalho necessário para produzir Overmundo é remunerado graças ao apoio de uma empresa pública, mediante patrocínio, devemos ter a ousadia de debater com a sociedade que se trata de uma relação muito mais avançada que vender o conteúdo do site aos que podem pagá-lo.

14. No Brasil, uma importantíssima janela de oportunidades em favor da comunicação compartilhada e de novos mecanismos de remuneração dos produtores culturais está se abrindo, há vários meses.

Certas atitudes políticas adotadas quase em bloco pelo oligopólio que controla a mídia provocaram um grave desgaste de sua legitimidade, principalmente entre a parcela mais esclarecida e politizada de sua audiência.

Surgiram, em paralelo, sinais de articulação embrionária entre publicações e produtores de conteúdo que atuam na blogosfera, o que poderia ser, no futuro, uma rede – horizontal e não-hierárquica – de novas iniciativas de comunicação independente.

Tiro pela culatra: o oligopólio da mídia tenta manipular duas vezes a
opinião pública, e sai com credibilidade arranhada

15. Em pelo menos dois episódios, a mídia comercial tentou manipular acontecimentos importantes, servindo-se do controle que julgava ter sobre a opinião pública para produzir fatos políticos que interessavam a si própria e às correntes políticas com quem se identifica.

Às vésperas do primeiro turno das eleições presidenciais de 2006, ela envolveu-se com a campanha do candidato conservador, e com setores da Polícia Federal, para produzir ilegalmente fotos, que foram apresentadas como comprometedoras de outro candidato – o então presidente da República, que acabou se reelegendo.

Mais tarde, no primeiro semestre de 2007, o oligopólio tentou tirar proveito de uma tragédia – um desastre aéreo com 200 mortes – para fabricar apressadamente uma suposta causa (problemas na pista do aeroporto de Congonhas), responsabilizar o governo federal e vitaminar um movimento de oposição de direita liderado por grandes empresários, auto-denominado “Cansei”.

Pesquisa, copy e edição – Flavio Deckes, com Outras Palavras

28.3.10

Edgar Rodrigues, Pesquisador do Movimento Operário




Por Jorge E. Silva *

Quando chegou ao Brasil em 1951, trazia na bagagem os originais de seus primeiros livros: Na Inquisição de Salazar e Fome em Portugal. No entanto, deixava o seu país menos pela fome do que pela oposição à ditadura de Salazar.

Filho de um militante anarco-sindicalista, Edgar Rodrigues teve de visitar várias vezes seu pai na prisão e tinha a certeza que se continuasse no país também ele acabaria preso.

No Rio de Janeiro, além de recomeçar a sua vida, tratou de publicar os livros contra a ditadura portuguesa, que logo entraram no índex do regime autoritário, embora Edgar Rodrigues não tenha deixado de os fazer entrar clandestinamente no seu país de origem. Por tudo isso só voltou a visitar Portugal vinte anos mais tarde, após a derrubada do fascismo em 1974.

Amigo de José Oiticica, Edgard Leuenroth e de muitos outros velhos militantes e jornalistas anarquistas, logo começou a colaborar na imprensa libertária.

A pedido de jornais do Uruguai, iniciou uma pesquisa sobre a história do movimento operário e sindical no Brasil. Aos poucos, correndo o Brasil, levantando informações com velhos militantes, recolhendo documentos raros, criou um importante acervo de história social, que lhe permitiu escrever alguns livros fundamentais:

Socialismo e Sindicalismo no Brasil (1969), Nacionalismo e Cultura Social (1972), Novos Rumos (1972), Alvorada Operária (1979) e Anarquistas: Trabalhadores Italianos no Brasil (1989).

Quando poucos pesquisadores se interessavam pela história do movimento operário e, menos ainda, pelo período em que nasceu o sindicalismo, Edgar Rodrigues documentou-a em suas obras exaustivamente.

Fornece um manancial de informações sobre as origens do sindicalismo e das idéias socialistas no Brasil, que hoje são preciosas para pesquisadores e historiadores.

Esse trabalho silencioso nunca mereceu o reconhecimento aberto dos setores acadêmicos – embora várias teses acadêmicas já tenham sido escritas com base no material e informações fornecidas por ele – já que foi realizado por um autor autodidata e independente, que não se submete aos cânones e regras dos manuais universitários.

Como escreveu Antônio Arnoni Prado "Os intelectuais com honrosas exceções, mantêm uma atitude ambígua face à obra de Edgar Rodrigues. Torcem o nariz, por um lado, reclamando maior rigor teórico; invejam, por outro lado, a riqueza documental de seus livros, quase insuperável, o que o torna passagem obrigatória, para quem se aventura no tema."

Para quem, como Edgar Rodrigues, sempre viveu de seu trabalho e pesquisou e escreveu nas horas vagas seus 1. 500 artigos e 36 livros, o reconhecimento de pesquisadores como Hélio Silva, Foot Hardman e Arnoni Prado é suficiente.

Aos 76 anos, Edgar continua um espectador atento da realidade social e mantém a disposição de continuar pesquisando e publicando. Na fila, está a continuidade da obra Companheiros, com biografias de militantes sindicais e libertários, uma coletânea, Livre Pensamento e uma longa lista de trabalhos.

A Pequena História da Imprensa Social, que a editora Insular de Florianópolis acaba de publicar é outra dessas suas obras que esteve parada durante anos na estante, esperando um tratamento mais definitivo.

Considerando que não tem mais tempo, nem condições para esperar, Edgar Rodrigues faz da forma que sempre fez - publica, esperando que seus subsídios e documentos ajudem e inspirem novos pesquisadores, mais jovens, mas não menos independentes e combativos do que ele.

Entrevista

Discreto, esta é a sua segunda entrevista. A primeira foi concedida a Arnoni Prado e Foot Hardman e publicada na Folha de S. Paulo em 84.

P - Embora desconhecida do grande público a sua obra de pesquisa social e sobre a história do movimento operário é uma fonte inestimável para qualquer historiador. Como começou essa sua atividade de pesquisador autodidata ?

R - Ainda adolescente ouvi falar em anarco-sindicalismo e anarquismo em casa de meus pais, em Portugal. No começo da ditadura escutava as reuniões clandestinas que se realizavam em nossa casa, começando, então, a entender as idéias que meu pai e seus companheiros debatiam.

Logo me iniciei na leitura de manifestos, jornais e documentos históricos. Pouco depois juntei uns tostões e comprei meus primeiros livros: A Velhice do Padre Eterno do poeta Guerra Junqueiro e Conquista do Pão de Pedro Kropotkin. Quando não conseguia comprar esses livros, copiava-os à mão, coisa que hoje deve ser motivo de espanto para aqueles que embora tenham dinheiro, não sabem o que é ler um livro.

O editor do meu livro Na Inquisição de Salazar disse na apresentação que eu era um pesquisador instintivo, acho que tinha razão. E ele não sabia, ainda, da mala cheia de papéis que trouxe no porão do navio de Portugal.

No Rio de Janeiro continuei com a mesma vontade da juventude e logo que pude escrevi a velhos militantes sindicalistas e libertários de fora e dentro do Brasil pedindo documentos e publicações antigas.

Mais tarde percorri vários estados, para entrevistar esses sindicalistas que me davam informações e me ofereciam seus velhos arquivos. Em alguns casos convenci parentes de velhos militantes a me venderem acervos que se estavam perdendo. Esta busca dura até hoje e já lá vão 65 anos...

P - Alguns autores acadêmicos o criticam, cobrando a falta de método e de rigor científico; como você avalia essas críticas ?

R - Para mim escrever livros foi uma conseqüência da pesquisa e coleta de informações. A minha formação é autodidata, os métodos de pesquisa, se assim os posso chamar, são os que fui experimentando e melhorando ao longo desse meu trabalho.

Minha principal preocupação tem sido não deixar perder documentos que ia descobrindo e divulgar uma história que vinha sendo ocultada e deturpada do movimento social no Brasil. Nunca tive a pretensão de entrar na academia ou me tornar famoso.

Eu não chego a partilhar totalmente da opinião do Barão de Itararé que escreveu: "Os diplomas não encurtam as orelhas de ninguém", mas que muita gente até pode voar com elas isso não tenho dúvida. Não existem pesquisas irretocáveis, mas se fosse perfeccionista e escutasse todas as críticas não escreveria 46 livros, nem publicaria 36, ficaria em um ou dois e olhe lá...

Assim consegui tornar públicos centenas ou milhares de documentos sobre o sindicalismo e movimento operário no Brasil que aí estão para quem quiser polir e dar a cera que eu não pude.

P - Como vê o papel dos intelectuais e da universidade numa sociedade como a brasileira ?

R - A universidade deveria dar uma formação integral e humanista aos estudantes e trabalhar para encontrar soluções ajudando a resolver os problemas da sociedade que a sustenta. O que acontece é o contrário: as academias pouco fazem para dar essa formação ou socializar o saber, perdidas num conhecimento cada vez mais especializado, hermético, que pode até ser profundo, mas com aquela profundidade das brocas que não pegam a luz do sol.

Falta-lhes a vida e o contato com a realidade. Esta especialização vertical é incapaz de entender e se sensibilizar com a realidade, com os homens de carne e osso. Seus livros e suas idéias podem estar "bem vestidas", usar os melhores "alfaiates gráficos", mas raramente se distinguem pela qualidade do conteúdo ou por seu sentido crítico.

São mais frias que uma natureza morta...Talvez por isso não seja de admirar que as nossas elites políticas e econômicas tenham saído dessas universidades!

P - Os movimentos sociais contemporâneos estão longe daqueles que você estuda e com os quais se identifica. Qual a sua avaliação sobre esse movimentos contemporâneos, em particular o sindicalismo ?

R - Os assalariados de hoje vivem ainda sujeitos à exploração ou à exclusão social como os operários e trabalhadores do passado. Também os movimentos sociais e o sindicalismo enfrentam muitos dos problemas do passado, por isso acredito que muitos dos métodos e da teoria do sindicalismo autônomo do passado continuam sendo válidas.

Esse sindicalismo, em que acredito, poderia ser a base da produção, da distribuição e da própria autogestão social. O suporte de uma nova sociedade. Agora o sindicalismo que aí está perdeu-se no corporativismo, politicagem e corrupção pelega, mesmo o que se apresenta pintado de esquerda.

Por outro lado, as modificações sofridas pelo capitalismo, o papel dos meios de comunicação e da própria educação na sustentação do sistema, com a colaboração de toda uma casta de intelectuais, criaram condições para este tipo de sindicalismo.

O movimento social perdeu a autonomia do passado - sustentar seus próprios jornais, manter uma cultura alternativa, com escolas, bibliotecas, teatro e centros de cultura social, alimentando um projeto revolucionário de mudança social.

Hoje aceita a enganação política, perde-se no consumismo e a sua "cultura" é a das novelas da televisão! No entanto, me parece que esse ciclo está chegando ao fim, as contradições existentes na sociedade, cada vez mais evidentes, vão exigir, mais dia menos dia, que se volte a pensar uma solução global para a nossa sociedade.

Nesse momento, muito do que foi pensado e proposto pelo sindicalismo revolucionário e pelos libertários vai voltar a se colocar.

P - A derrocada do sistema que vigorava no Leste europeu tem servido a muitos intelectuais para decretar a morte da utopia e das idéias socialistas. Qual a sua opinião?

R - A revolução popular russa de fevereiro de 1917 foi a esperança de milhões de pessoas em todo o mundo, incluindo na América Latina, só que, logo depois, o golpe dos comunistas em outubro e a aplicação do projeto estatizante e autoritário criaram o sistema tudo para o estado (e suas burocracias) nada para o povo.

O resultado está aí à vista, passados 80 anos. Uma história de repressão monstruosa, corrupção, crimes, exploração, falta de liberdade, liquidando toda uma esperança e expetativa criada para os pobres e explorados de todo o mundo e gerando sociedades que hoje entraram em colapso.

A obsessão pelo poder cegou de tal forma essas burocracias que nem deixa ver que a pirâmide em que estavam sentadas, estava ruindo. Afinal o gigante tinha pés de barro...Mas isto não foi o fim da utopia. Esta só morrerá com o homem.

Uma sociedade realmente socialista e libertária teria de se apoiar em três pontos principais:

No homem como ser livre e capaz de se melhorar e aperfeiçoar; numa educação racionalista e humanista que contribuísse para capacitar técnica e socialmente os membros da sociedade e criar uma ética e uma cultura que reforçasse os laços comunitários e de solidariedade; na liberdade plena, com igualdade efetiva de direitos e deveres.

Só assim uma sociedade autogestionária poderia desenvolver suas raízes. Utopia? O tempo dirá se o ser humano não pode revelar todo o seu potencial societário positivo, que segundo Kropotkin é a base da cooperação na sociedade. Otimisticamente, os libertários acham que sim.

P - Os libertários partilham de uma visão que aponta a auto-organização social e econômica, a descentralização e o federalismo como solução para a presença opressiva e autoritária do Estado. Qual a viabilidade de uma proposta dessas no mundo contemporâneo e no Brasil em particular ?

R - Já não tenho idade para ser ingênuo e pensar que vão acontecer a curto prazo mudanças profundas nas sociedades que conheço. Os obstáculos a vencer são tais que certamente exigem, entre outras coisas, tempo, agravamento da crise e dos problemas e o renascimento de novos movimentos sociais mais capazes, mais preparados, mais cooperativos e mais fortes para enfrentar esse desafio de criar uma sociedade realmente humana.

Só que para lá do poder e da alienação com que temos de nos confrontar, cada um de nós carrega atavismos milenares e deformações culturais e psicológicas, que tornam uma mudança social profunda (que é também necessariamente uma mudança pessoal) um parto difícil.

O anarquismo, como qualquer outra filosofia social não se baseia em milagres (mesmo que muitos acreditem neles). Não se propõe a curar todas as enfermidades com um remédio desconhecido, menos ainda somos mágicos.

Pelo contrário, o anarquista é um atleta, um corredor de fundo, precisa ter fôlego para agüentar os desafios que enfrenta. Quem não for capaz disso, de resistir, de agüentar, não é certamente um libertário. Terá de pensar em ser comerciante ou conseguir um cargo político e se acomodar.

Outra solução é criar uma igreja e conseguir muitos crentes, prometendo uma vida melhor na eternidade. Dessa forma consolam-se os tolos e fica rico o padre ou pastor!

A proposta de uma sociedade libertária - baseada na descentralização, federalismo e autogestão social - penso ser a mais moderna e atual entre todas as que começaram a ser formuladas nos séculos XVIII–XIX.

Dessa forma, ela corresponde ao que o mundo e, no nosso caso o Brasil, precisa para resolver grande parte dos problemas sociais, econômicos e ecológicos que se colocam hoje, criando uma sociedade capaz de se autogerir e auto-controlar.

O que é um passo decisivo em direção à realização e felicidade humanas nesta nossa existência transitória e é a grande questão que se coloca aos seres humanos desde os seus primórdios.

http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/edgarrodrigues.html

* Jorge E. Silva é assessor do Centro de Estudos, Cultura e
Cidadania de Florianópolis (CECCA)


Bibliografia de Edgar Rodrigues

– Na Inquisição de Salazar. Rio de Janeiro: 1957.
– A Fome em Portugal. Rio de Janeiro: 1958.
– Portugal Hoy. Caracas: 1963.
– Socialismo e Sindicalismo no Brasil. Rio de Janeiro: Laemmert, 1969.
– Nacionalismo e Cultura Social. Rio de Janeiro: Laemmert, 1972.
– Novos Rumos, Rio de Janeiro: Mundo Livre, 1972.
– ABC do Anarquismo. Lisboa: Assírio e Alvim, 1976.
– Breve História das Lutas Sociais em Portugal. Lisboa: Assírio e Alvim, 1977.
– Deus Vermelho. Porto: S/E, 1978.
– Alvorada Operária. Rio de Janeiro: Mundo Livre, 1979.
– Socialismo: Uma Visão Alfabética. Rio de Janeiro: Porta Aberta, 1980.
– O Despertar Operário em Portugal. Lisboa: Sementeira, Lisboa, 1980.
– Os Anarquistas e os Sindicatos. Lisboa: Sementeira, 1981.
– A Resistência Anarco-Sindicalista em Portugal. Lisboa: Sementeira, 1981.
– A Oposição Libertária à Ditadura. Lisboa: Sementeira, 1982.
– Lavoratori italiani in Brasil. Itália: Galzerano Editore, 1985.
– ABC do Sindicalismo Revolucionário. Rio de Janeiro: Achiamé Editora, 1987.
– Os Libertários. Petrópolis: Vozes, 1988.
– Os Anarquistas, Trabalhadores Italianos no Brasil. São Paulo: Global Editora, 1989.
– O Anarquismo no Teatro, na Escola e na Poesia. Rio de Janeiro: Achiamé Editora, 1992.
– Quem Tem Medo do Anarquismo? Rio de Janeiro: Achiamé Editora, 1992.
– Entre Ditaduras. Rio de Janeiro: Achiamé Editora, 1993.
– O Ressurgir do Anarquismo. Rio de Janeiro: Achiamé Editora, 1993. – A Nova Aurora Libertária. Rio de Janeiro: Achiamé Editora, 1993.
– Os Libertários. Rio de Janeiro: VJR Editores, 1993.
– O Homem em Busca da Terra Livre. Rio de Janeiro: VJR Editores, 1993.
– O Anarquismo no Banco dos Réus. Rio de Janeiro: VJR Editores, 1993.
– Os Companheiros 1. Rio de Janeiro: VJR Editores, 1994.
– Os Companheiros 2. Rio de Janeiro: VJR Editores, 1995.
– Diga Não à Violência. Rio de Janeiro: VJR Editores, 1995.
– Pequena História da Imprensa Social no Brasil, Florianópolis, Editora Insular, 1997.
– Os Companheiros 3. Florianópolis: Insular, 1997.
– Os Companheiros 4. Florianópolis: Insular, 1997.
– Os Companheiros 5. Florianópolis: Insular, 1997.
– Notas e Comentários Histórico-Sociais. Rio de Janeiro: CC&P Editores, 1998.
– O Universo Ácrata (Vol. I e II). Florianópolis: Insular, 1999.
– Pequeno Dicionário das Idéias Libertárias. Rio de Janeiro: CC&P Editores, 1999.

Edgar Rodrigues é ainda autor de milhares de artigos publicados em jornais e revistas de vários países. Muitos desses trabalhos, bem como seus livros, podem ser encontrados no Arquivo Edgard Leuenroth da Unicamp.

http://www.unicamp.br/suarq/ael/ael.html

As edições mais recentes das obras de Edgar Rodrigues podem ser pedidas à Livraria e Editora Insular:

insular@fastlane.com.br


Pesquisa, copy e edição - Flavio Deckes

A Crise Financeira atual nos Estados Unidos é uma Crise Urbana


O geógrafo David Harvey, professor na City University
of New York (CUNY), é bastante conhecido pelas suas
análises políticas, econômicas
e culturais sobre as cidades e
os processos sociais contemporâneos.

Em trabalhos como Justiça Social nas Cidades (1973),
A Condição Pós-Moderna (1989),

O Novo Imperialismo (2003)
ou Neoliberalismo (2008) são analisados os
conflitos urbanos relacionados com os processos
de formação e acumulação do capital.


Por David Harvey *

Ao longo da história, nos momentos de crises vemos surgir um novo capitalismo. Vivenciamos isso na crise dos anos 70, um ponto de inflexão importante que fez nascer o neoliberalismo, a financeirização, bem como um notável aumento da desigualdade social.

E hoje estamos novamente num desses momentos. Se atentarmos para as respostas que estão sendo propostas em Washington e em Londres, vemos que se deve preservar primeiramente as instituições financeiras, ficando o povo em segundo lugar, e com a função de pagar a conta!

Mas esse foi justamente o grande mote, em outras palavras, da revolução neoliberal dos anos 70. Vivemos de fato um programa de ajuste estrutural em escala global que vem sendo administrado não pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), mas sim pelo mercado.

Dizíamos que, de fato, os Estados Unidos deveriam ser monitorados por um organismo do tipo do FMI, mas os Estados Unidos são o FMI e eles não vão se automonitorar. Portanto, não creio que este seja o fim desse tipo de liberalismo ou neoliberalismo.

Acredito que há um profundo empenho em salvar as instituições financeiras e as pessoas que as administram tanto quanto possível. E o povo terá que pagar a conta.

Acho que a dificuldade neste preciso momento está na maneira como legitimar tal processo. Nos anos 70, bastava entoar o cântico “o mercado livre se encarregará de fazer todos os ajustes”.

Agora nos encaminhamos para uma crise de legitimidade na qual a população não necessariamente vai aceitar o que lhe estão impingindo, em especial nos Estados Unidos.

Creio que nos próximos dois ou três anos haverá uma considerável dificuldade política nos centros do capitalismo para legitimar o que estão tentando levar adiante.

Outro dia alguém fez uma estimativa e concluiu que houve cerca de 370 crises financeiras no mundo desde 1970. Entre 1945 e 1976, ocorreram ao redor de 60 crises financeiras. Portanto, o período neoliberal é marcado por muitas crises financeiras.

E por crise eu entendo “ajuste estrutural”. Como suas origens se vinculam ao contexto urbano, a crise atual tem de ser encarada como uma crise urbana.

Nos Estados Unidos deveríamos parar de discutir sobre algo chamado crise hipotecária ou do subprime – as hipotecas de risco – para discutir a crise urbana, que tem como base um superaquecimento do mercado imobiliário americano e começou quando, em 2000, os ricos deixaram de investir em atividades produtivas para se dedicar à especulação, dilapidando ativos patrimoniais, particularmente ações e propriedades.

Na Suécia, em 92, após uma crise originária de uma excessiva especulação nos mercados imobiliários, as instituições financeiras quebraram e os suecos tiveram que nacionalizar os bancos. Já o boom japonês encerrou-se por volta de 1990 no mercado imobiliário e o mercado imobiliário quebrou.

Nos Estados Unidos, temos crises das instituições de poupança e crédito que custam aos cofres públicos cerca de US$ 200 bilhões. E é interessante lembrar o que dizia o presidente das corporações de seguros federais aos banqueiros americanos em 1987: “Se não acertarmos as coisas, teremos que nacionalizar os bancos nos Estados Unidos”. Essa afirmação é de 1987.

Não sei quantas dessas 370 crises estão relacionadas com os mercados imobiliários, mas suponho que pelo menos a metade delas têm algum componente de investimento excessivo no mercado imobiliário. Ou seja, uma das coisas às quais devemos estar atentos é a relação entre urbanização, capital financeiro e formação de crises.

Nos Estados Unidos, acho que podemos de fato considerar esta como uma situação geral, uma vez que desde 1970 temos vivido o que chamamos de arrocho salarial, com o salário real permanecendo estacionário. Ao mesmo tempo, os financiadores emprestaram dinheiro para os incorporadores imobiliários para a construção de condomínios.

Assim, a grande questão era: como as pessoas, cuja renda não está aumentando, pagam por esses imóveis? Bem, os financiadores diziam às pessoas que viviam sob esse arrocho salarial: “Contraiam dívidas!”. Logo, as despesas com moradia nos Estados Unidos aumentaram em cerca de três vezes, ao passo que os salários permaneceram congelados.

O descompasso entre os dois cresceu continuamente. E, em certo sentido, o capital financeiro pôde atuar no cenário urbano tanto fornecendo moradias quanto estimulando demanda por elas, por meio de suas táticas de financiamento. Porém, é claro que seu interesse maior residia na construção de casas de alto padrão e não em oferecer moradia à população de baixa renda.

Assim, da forma como vejo, a estrutura da crise financeira nos Estados Unidos é notadamente urbana no que diz respeito a suas origens. E é justamente essa relação que eu considero importante analisar.

Um dos resultados da crise é que cerca de 3 milhões de pessoas perderam suas casas nos Estados Unidos no último ano. Provavelmente, antes que esse processo termine, entre 6 e 10 milhões de pessoas estarão na mesma situação.

Se observarmos onde isso aconteceu, a onda inicial de inadimplências ocorreu em duas áreas específicas: uma delas, as velhas cidades dos Estados Unidos, como Cleveland, Baltimore e Detroit; a outra coincide com a distribuição da população negra.

Na realidade, tivemos o que podemos chamar de um Katrina financeiro, que atingiu todas as cidades, simplesmente varrendo do mapa os bairros pobres em municípios como Cleveland e Baltimore.

Em Cleveland ocorre uma sobreposição perfeita entre os bairros ocupados por afro-americanos e os lugares onde estão o maior número de pessoas que estão perdendo suas casas por causa das execuções hipotecárias. Foi a maior perda já registrada na história do negro americano de baixa renda.

O que eu realmente quero é enfatizar mais incisivamente a relação entre a dinâmica da urbanização e a acumulação de capital.

Não poderemos solucionar o problema com o “direito à cidade” ** para o conjunto da população sem realmente nos confrontarmos com essa questão central. O capitalismo cresce. Historicamente, desde 1750, ele vem crescendo cerca de 3% ao ano.

E eu vi um cálculo interessante em relação à questão ambiental. Por volta de 1750, a geração total de bens e serviços no cenário capitalista atingia cerca de US$ 135 bilhões, no capitalismo global. Em 1950, o total alcançava US$ 4 trilhões. Em 2000, a cifra elevou-se a US$ 40 trilhões.

Na nossa época, é difícil fazer uma avaliação, mas, se não tivesse ocorrido o crash, chegaríamos a cerca de US$ 50 trilhões, que, provavelmente, se duplicariam nos próximos 25 anos. Onde investir tamanha massa de dinheiro?

Eu espero que haja uma nova agenda [após o colapso financeiro ]. Mas a pergunta é: qual? Como afirmei, estamos inseridos numa crise de legitimidade e esse é um processo que demanda tempo.
Se olharmos para o crack da bolsa de 1929, veremos que houve sérias implicações políticas nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha por volta de 1932. Assim, levou três anos para que as pessoas começassem a se manifestar.

O que eu quero é que nos concentremos no controle sobre os excedentes: quem produz os excedentes, como são produzidos, por quê, como são distribuídos? E para que isso ocorra, é necessária uma reconstrução radical do modo de funcionamento do aparato estatal.

Não sei como é no Brasil, mas em muitos países os governos estão intimamente ligados aos interesses financeiros. Eu costumo brincar que temos nos Estados Unidos um partido político que é o Partido de Wall Street. E ele está tão imbricado no Partido Democrata quanto no Partido Republicano. Temos é que confrontar esse fato.

Não se trata de dizer que Wall Street se opõe à reforma. Na realidade, a própria Wall Street desejará que ocorra uma reforma reguladora. Porém, é preciso atentar para a tese da chamada “incorporação reguladora”, em que as corporações desenham um aparato regulador para atender suas conveniências.

Desde o início do século passado, vários aparatos reguladores desenvolvidos pelos governos foram incorporados pelas corporações. Dessa forma, os aparatos fizeram aquilo que as corporações determinavam.

Há muitas provas de que todos os grupos reguladores na esfera federal a partir de 1990 foram totalmente capturados pelos interesses de Wall Street. E o que é exasperador a respeito da equipe econômica de Obama é que, na verdade, são as mesmas pessoas. Eles não são radicalmente diferentes. Portanto, eles criarão o arcabouço regulador que Wall Street deseja ver incorporado.

* Excerto de entrevista ao Le Monde Diplomatic em março de 2010

** “Direito à Cidade” é um conceito desenvolvido pelo autor. É um direito de participar da construção e da reconstrução do tecido urbano, de formas mais condizentes com as necessidades da massa da população.


Pesquisa, copy e edição – Flavio Deckes

23.3.10

Construir uma Nova Utopia é Possível


Teoria Geral da Relatividade
faz 94 anos de publicação



As deduções de Einstein ajudaram a abalar as idéias
sobre o mundo que herdamos da modernidade.
E oferecem pistas para repensar,
hoje, tempo, ciência, sociedade e utopia.


Por Antonio Martins

Em 20 de março de 1916, Albert Einstein publicou sua Teoria Geral da Relatividade. As idéias gerais nela contidas haviam sido apresentadas em novembro do ano anterior, na Academia Prussiana de Ciências, e ocupavam o físico desde 1907.

Eram uma tentativa de colocar em diálogo sua Teoria Restrita da Relatividade (apresentada em 1905) e a física de Galileu e Newton, um dos fundamentos da ciência moderna. Mas abalavam as certezas anteriores (e ainda hoje predominantes, no senso comum) sobre tempo, espaço e movimento.

A imensa série de desdobramentos científicos e filosóficos da teoria de Einstein não cabe, evidentemente nestas linhas. Mas seu sentido geral é radicalizar a noção de que não há pontos de referência universais – nem, portanto, verdades únicas.

Séculos antes, Galileu havia demonstrado que um mesmo fenômeno físico é visto de distintas maneiras, dependendo do ponto onde está o observador. Einstein acrescentou, a esta incerteza, muitas outras – relacionadas especialmente ao tempo.

Também este, mostrou ele, dilata-se e se contrai. Não há um relógio universal, uma régua geral para todos os acontecimentos. Dois eventos que um observador vê como simultâneos podem não o ser para outro.

O interessante é que esta quebra de paradigmas científicos seria seguida, décadas mais tarde, por mudanças que sacudiram as noções sociais de tempo e a percepção sobre o status da ciência. Ao menos dois textos, disponíveis na Biblioteca Diplô, contribuem diretamente para este debate.

Em “O Futuro do Tempo”, Jérôme Deuvieau discute como a pós-modernidade dissolveu as réguas temporais mais importantes desde o Renascimento (as do trabalho) sem que nada tenha, ainda, ocupado seu lugar.

Na Idade Média, considera ele, o tempo religioso dava sentido à vida. Mais tarde, este papel passou a ser exercido pelo labor, que cumpriu as três funções básicas antes preenchidas pela fé e seu serviço: a) Produzir vínculo social; b) Estabelecer laços entre atividade e "salvação"; c) Orientar o futuro, dando-lhe um sentido, agora secular.

Mas a deslegitimação do trabalho começa no séc. XIX e acelera-se no seguinte – por múltiplos fatores. Em países como a França, o tempo diretamente dedicado às atividades laborais cai de 70% da vida em vigília (em 1850) para 7% a 8%, hoje.

As máquinas (O Capital) encarregam-se de um conjunto crescente de atividades antes executadas por seres humanos. E as próprias aspirações dos indivíduos, na virada para o séc.XXI, deslocam-se da acumulação de bens materiais para a "redescoberta de si".

O aspecto negativo destas transformações está, também ele, relacionado ao tempo e sua métrica. Os projetos anteriores de um "futuro melhor" por meio do trabalho coletivo perdem sentido – tanto para os que apostavam nas supostas virtudes da disciplina capitalista quanto para os que esperavam a coletivização da indústria.

À falta de um futuro, busca-se desesperadamente o imediato: "o ser humano de hoje enxerga-se com direitos sobre o de amanhã, ameaçando o bem-estar, equilíbrio e às vezes a vida deste último".

A saída, imagina Deauvieau, está numa visão do futuro que substitua a velha ideia linear de tempo e "progresso" por outra, baseada na responsabilidade.

Construir uma nova utopia é possível. Mas implica assumir posturas que já não se apoiam principalmente em nosso lugar na produção de riquezas – mas em nossa solidariedade com as gerações futuras, precaução com o planeta, preservação e multiplicação dos bens comuns.

A mudança de paradigma provocada pela Teoria da Relatividade suscita ainda outra linha de reflexão pouco convencional.

Em "Outra Ciência é Possível", Jean-Marc Lévy-Leblond questiona uma das certezas que acompanham o Ocidente desde o Renascimento: o suposto caráter "neutro", "objetivo" e, portanto, "universal" do saber científico.

É algo que resistiu, pensa ele, como um porto seguro no séc.XX. "Em um mundo no qual sistemas sociais, valores espirituais, formas estéticas vivem incessantes abalos, seria tranquilizador que a ciência oferecesse pelo menos um ponto fixo de referência, dentro do relativismo ambiente"...

Mas ao longo de seu texto, Leblond reúne elementos que contestam esta falsa segurança.

O que chamamos hoje de "ciência" diz ele, é uma das múltiplas formas possíveis de produção do saber. Seu método, desenvolvido a partir da Grécia e baseado na abstração e na prova, é de fato um avanço em relação, por exemplo, às formulações empíricas dos egípcios.

Regride mais tarde, para ressugir no Renascimento (com grande contribuição islâmica), associado à mecanização, ao "domínio da natureza" e à produção de riquezas.

Mas pode perfeitamente estar em declínio. O comando mercantil que lhe deu força em outros tempos restringe gravemente, hoje, a "possibilidade de pesquisas especultavas, sem garantia de sucesso imediato".

Não há ampliação de horizontes sem abandono das antigas referências.

Assim como a Teoria da Relatividade nos liberta da segurança ilusória de um "tempo único", deveríamos estar abertos, conclui Leblond, a "outras formas de ciência". Mas não poderemos fazê-lo sem o doloroso reconhecimento de que não temos as chaves do saber...

Pesquisa, copy e edição – Flavio Deckes, com Le Monde Diplomatique

22.3.10

Mais tecnologia e menos jornalistas - é a crise das mídias


A editora Ringier, o maior grupo de comunicação privado da Suíça e detentora de títulos populares como os jornais Blick, funde suas redações em uma super-redação denominada newsroom.
O plano iniciado em 7 de março é resposta à crise das mídias tradicionais e também à revolução tecnológica.

As empresas de mídia estão sob pressão. Enquanto o número de assinantes e as vendas em banca dos títulos mais tradicionais da Suíça estagnam há anos, somente os jornais gratuitos crescem.

A realidade é que o leitor mudou de rumo, a maioria em direção à internet. "O mundo da mídia muda com uma velocidade avassaladora. As pessoas consomem informação e se distraem de uma forma completamente diferente hoje do que o faziam há três anos", afirma Marc Walder, chefe da Ringier.

Para reforçar suas palavras, o executivo apresenta aos jornalistas presentes na coletiva de imprensa o vídeo do que, em sua opinião, representa o futuro: uma apresentação da revista esportiva americana Sport Illustrated funcionando dentro de um iPad, as futuras pranchetas eletrônicas do fabricante Apple e que mais lembram iPhones superdimensionados.

- A mobilidade é o segredo. Precisamos colocar nossas histórias nos canais corretos, vinte e quatro horas por dia - completa. E para reforçar sua palavra, ele mostra gráficos que revelam como os jornais do grupo Ringier perderam gradualmente leitores nos últimos anos.

Assim fica claro entender que a editora suíça encontrava-se em um grande dilema. Ela anunciou então um grande plano de reestruturação e deu-lhe o nome de newsroom.

Por trás desse enigmático nome, atualmente em voga na mídia anglo-saxã, está uma nova super-redação que reúne os quatro principais títulos da editora - os jornais Blick, Blick am Abend (edição vespertina), Sonntags-Blick (edição dominical) e o portal de informações Blick.ch, o mais popular do país na área de notícias - em um único espaço.

Impulsionada pela crise, a idéia surgiu no verão de 2007. A questão era descobrir como produzir jornal no futuro. Para encontrar a resposta, a editora enviou seus representantes a várias outras redações já integradas no formato de newsroom em algumas capitais européias.

Dentre eles, o Daily Telegraph (Londres) ou o jornal dinamarquês Nordjyske Stiftstidende, onde jornalistas já trabalham de forma coordenada, produzindo ao mesmo tempo informações para o site, jornal, televisão e rádio.

As obras no prédio da Ringier, localizado em um bloco atrás da Ópera de Zurique, começaram em julho de 2009. Um ano depois, as novas instalações estavam prontas: por trás de grandes janelas de vidro, uma redação com 2.500 metros quadrados de área, 250 postos de trabalho, sem muros de separação ou salas individuais, equipadas com modernos computadores e painéis eletrônicos.

Se não fosse o moderno estúdio de televisão, integrado à redação, o visitante incauto até poderia se achar dentro de um grande escritório de banco americano.

Início do projeto

No dia 7 de março de 2010, o Blick deu a largada inicial para o seu projeto de newsroom. Desde então, 200 jornalistas, fotógrafos, técnicos e designers, divididos em sete diferentes editorias - news, política, economia, esportes, people e lazer, lifestyle e a redação de imagem - produzem ao mesmo tempo as 21 mil páginas anuais dos quatro títulos.

Concretamente, isso significa que um redator comum pode preparar sua reportagem de fundo para a edição dominical, mais pesada. Ao mesmo tempo, ele escreve reportagens ou colunas para as edições diárias do Blick.

E parte da sua produção vai para internet, sendo que os meios eletrônicos têm privilégio para o que é atual. "Notícias quentes são colocadas diretamente no site, sempre cumprindo o lema online first, explica Hannes Britschgi, redator-chefe do Sonntags-Blick.

A divisão de tarefas também se tornou mais fluida. Britschgi revela que os jornalistas do Blick também estão sendo incentivados a não se limitar mais só à escrita, mas também utilizar câmaras fotográficas ou de TV, caso haja uma ocasião.

Para exemplificar, Edi Estermann, chefe do projeto newsroom Ringier, aponta uma redatora da editoria people (sociedade), que no momento da coletiva entrevistava no estúdio de TV a modelo suíça Xenia Tchoumitcheva.

- Normalmente essa jornalista só escreve, mas agora está fazendo uma nova experiência. Além de fazer a matéria, ela também exibe a entrevista ao vivo no site do Blick.ch. Isso mostra como esses dois canais saem ganhando - conta com orgulho.

O "sismógrafo" das notícias

As denominações em inglês dadas aos diferentes espaços na nova redação do grupo Blick dão o tom da nova forma de fazer jornalismo. Decision place é o nome do posto de comando, um salão com uma grande mesa em forma de meio círculo, onde sentam os redatores-chefes dos quatro títulos e Marc Walder, como editor responsável.

Os chefes das editorias e outros responsáveis se revezam para ocupar as cadeiras frente às duas mesas, dispostas paralelamente uma a outra frente à mesa em meio círculo.

No centro delas, uma grande mesa oval para as reuniões de pauta, sempre organizadas as 8 e 10 da manhã e às duas da tarde. Frente a eles, um telão gigantesco, cuja principal função é exibir em tempo real estatísticas do site - um sistema chamado de "sismógrafo" - além de um sistema de edição que mostra quais matérias estão sendo preparadas, televisão e também sites da concorrência.

Nos espaços laterais ficam os jornalistas, também chamado content place. Os ilustradores e fotógrafos compartilham o making place. E quando jornalistas, incluindo os redatores-chefes, precisam de tranquilidade nesse ambiente frenético para fazer uma entrevista ou escrever editorais, eles podem ir ao lounge, uma sala em forma de 8 decorada com sofás e mesas e dividido do resto da redação por paredes de acrílico.

25 demissões

Apesar da uniformidade do local, Marc Walder faz questão de dizer que os quatro títulos do Blick irão manter suas próprias identidades. Ele lembra que sempre ouve a frustração de muitos jornalistas com a falta de espaço no jornal para colocar suas boas histórias. "Eles costumavam perguntar se não seria possível escrever também para outros títulos da casa", diz.

Hannes Britschgi lembra que a redação de esporte já trabalha há vinte anos para o Blick e o Sonntags-Blick ao mesmo tempo, sendo que há pouco integrou também o Blick am Abend. "Eles são a prova de que o conceito do newsroom pode funcionar", reforça o redator-chefe.

A insistência explica-se pela insegurança que ainda paira no ar. Mesmo os responsáveis confirmam que pequenas panes ocorreram desde que o projeto foi iniciado em 7 de março. O início coroou também um grande período de nervosismo entre os funcionários da casa. Em setembro de 2009 eles foram obrigados a fazer cursos para entrar no contexto do newsroom.

Dois meses depois, foi anunciado que os chefes das editorias precisariam mais uma vez se candidatar aos seus cargos e concorrer até com profissionais externos.

No total, o projeto teria custado 15 milhões de francos, mas algumas fontes falam de 20 milhões. A nova eficácia também teria o seu preço: 25 pessoas foram demitidas, a metade jornalistas.

Para os sindicatos, newsroom é apenas um plano de corte de despesas. Já Edi Estermann, chefe do projeto, coloca as preocupações de lado. "O trabalho para os jornalistas se tornou mais interessante, mais diversificado. Agora eles têm mais possibilidades. Minha impressão é de que a reação dos meus colegas é muito positiva."

Por Alexander Thoele

Pesquisa, copy e edição – Flavio Deckes, com swissinfo

Banqueiros ignoram e aprofundam crise mundial


A economia mundial ainda não saiu da recessão provocada pela
crise financeira. A retomada do crescimento será lenta,
dolorosa e difícil, prevê o professor suíço Mauro Baranzini, decano da Faculdade de Economia da Universidade da Suiça Italiana (USI).

Segundo estimativas de institutos de pesquisa econômica,
em 2010 o Produto Interno Bruto (PIB) da Suíça deverá crescer
0,5 a 1%, depois de ter encolhido de 1,5 a 3% em 2009.
A crise já teria então terminado?

Na entrevista a seguir, ele afirma que muitos banqueiros não
aprenderam a lição desta crise dos mercados.

P - Depois de um ano de recessão, os especialistas preveem um retorno ao crescimento, mesmo que tímido, para 2010. O pior realmente já passou?

R - Essas previsões não me convencem. Com relação ao PIB, é provável que tenhamos tocado o fundo do poço nos últimos meses. Mas há numerosas variantes ainda desconhecidas relativas às exportações de bens e serviços, que representam 40% de nosso PIB e do que depende em grande parte o bem-estar da Suíça.

Hoje vários países importantes preveem crescimento negativo também em 2010, Entre eles estão a Grã-Bretanha e o Japão, que são parceiros comerciais não negligenciáveis para a Suíça. Enquanto esses países, para os quais exportamos muitos produtos, como mecânica e máquinas, não se recuperarem de maneira clara, não vejo como ter uma retomada rápida, mesmo na Suíça.

P - Também se fala em lenta recuperação do mercado de trabalho, não é?

R - No mercado de trabalho a situação ainda vai piorar durante um ano, um ano e meio. Esse setor tem sempre um atraso de pelo menos 12 meses em relação à evolução do PIB. Para criar novos postos de trabalho, o crescimento precisa ser de 1,5 a 1,75%. Somente a partir daí é que o emprego aumenta. E antes de voltar a uma taxa de crescimento como essa ou superior, será necessário ter paciência ainda por pelo menos dois anos.

P - Com o agravamento da crise e o espectro da grande depressão dos anos 1930, até que nos saímos bem hoje?

R - Esta crise, que chamo pessoalmente de super-recessão, é sem dúvida a mais grave desde a década de 1930. Mas nos saímos relativamente bem porque os bancos centrais e os governos fizeram injeções maciças de capitais para socorrer os mercados financeiros e a indústria automobilística. No entanto, será preciso pagar a conta dessas intervenções. Ainda não será o caso no ano que vem, mas nos próximos anos e o preço será alto.

P - E como nós vamos pagar essa dívida?

R - De várias maneiras. Principalmente por um aumento sensível da pressão fiscal no âmbito internacional para pagar os juros da dívida pública e para reembolsar uma parte dessa dívida. Um outro dado preocupante é o fato de que esses governos não sabem como agir frente às empresas que eles salvaram.

Veja um exemplo: na Grã-Bretanha, 70% das ações dos três maiores bancos nacionais pertencem atualmente ao Estado, que não sabe como administrá-las porque não estava preparado para essa eventualidade. O Estado não pode se transformar em banqueiro da noite para o dia. Eu temo que o futuro nos reserve uma má surpresa desse lado.

P - Estados endividados até o pescoço e uma pressão fiscal mais forte; quer dizer que existe um risco de que tudo isso nos leve a uma nova crise nos próximos anos?

R - Vários economistas falam de recessão em “W”, ou seja, que depois do nível mais baixo, corremos o risco de cair novamente dentro de um ou dois anos. Não creio nesse cenário. Eu acho somente que a retomada do crescimento será muito lenta, muito dolorosa e acompanhada de uma taxa de desemprego alta.

Depois, será necessário que os bancos centrais se entendam para evitar o desenvolvimento de pressões inflacionárias, quando entrarmos na fase de retomada mais ou menos forte. Esse risco não existe atualmente, porque os preços estão estáveis ou até mesmo em queda em certos países. Mas muitos, temendo justamente uma onda de inflação, começam a investir e a especular com as matérias-primas ou com o ouro.

P - Na Suíça, o governo e o Parlamento foram prudentes e só liberaram alguns bilhões de francos para lutar contra a recessão. O senhor acha que foi uma opção inteligente?

R - Minha resposta é, em princípio, positiva. Como a Noruega, a Suíça é um dos raros países que não se endividou muito nos últimos meses. Desse ponto de vista, o país sairá da recessão com a cabeça alta.
No entanto, as intervenções para apoiar o emprego não foram muito incisivas. Em acho que os três pacotes de medidas colocados em prática nos últimos meses pelas autoridades suíças criaram aproximadamente 20 mil postos de trabalho, enquanto o número de desempregados é atualmente de 140 mil pessoas em todo o país.

P – Já se falou muito da necessidade de regular melhor o setor financeiro para evitar que uma crise dessas se repita. Na prática, o que foi feito até aqui?

R - Praticamente nada. Não há novos regulamentos e a luta contra os bônus ainda tem muito chão pela frente. Basta pensar no Royal Bank of Scotland, cuja metade do capital pertence ao governo, e que em 2009 distribuiu 2,6 bilhões de francos de bônus. Parece que muitos banqueiros ainda não apreenderam a lição.

Em outros termos, esperamos chegar a uma situação com nova regulamentação, antes de uma nova quebra dos mercados. Mas eu estou cético quanto à vontade dos governos de intervir para de fato evitar que crises como esta se repitam. Infelizmente, a memória é curta e termina em menos de uma geração. E uma geração passa muito rápido.

Pesquisa, copy e edição – Flavio Deckes, com swissinfo

17.3.10

Tecnologia do Conhecimento


A modernização tecnológica abre espaço tanto
para a circulação do conhecimento quanto para
a interação eficiente entre os agentes econômicos.
Surge, assim, um potencial de dinamização dos
pequenos produtores e das economias locais

Por Ladislau Dowbor*

O embate político em torno da economia do conhecimento é, sem dúvida, central.

Ignacy Sachs caracteriza bem o deslocamento da luta pela propriedade dos meios de produção no século passado para a batalha pelo acesso ao conhecimento nos dias de hoje.

Em particular, o que interessa aqui é o potencial de inclusão produtiva do “andar de baixo” da economia, aproveitando a virtual gratuidade da circulação do conhecimento e o barateamento radical – e até mesmo o não-pagamento – sobre a conectividade entre os agentes econômicos.

Temos instrumentos profundamente inovadores e generalizáveis. Mas o que isso pode representar para enfrentar o desafio central da desigualdade?

A compreensão do seu potencial se expande rapidamente. Misturando economia com as plataformas wiki, o livro Wikinomics tem um título que já revela tudo. No entanto, por via das dúvidas, os autores acrescentaram o subtítulo: “como a colaboração em massa pode mudar o seu negócio”1.

Nele, dezenas de exemplos mostram de que forma a interação colaborativa pode elevar a produtividade de empresas, até mesmo na indústria farmacêutica e na mineração.

Conhecimento é um bem cujo estoque não diminui quando o utilizamos, pelo contrário, se multiplica. Assim, as novas tecnologias e a conectividade geral permitem tanto a circulação do conhecimento como a interação mais eficiente entre os agentes econômicos.

Em 2006, o Brasil tinha cerca de 190 milhões de habitantes, dos quais 125 milhões estavam em idade ativa2. Entre estes, a População Economicamente Ativa (PEA) atingia 98 milhões de pessoas. Somados, os empregos formais no setor privado – 31 milhões – e os funcionários públicos chegavam a 40 milhões de indivíduos.

Há ainda certo número de autônomos, empresários e outros, mas os 51% restantes da PEA, a maioria, estavam no setor informal. Ou seja, o reverso da medalha da desigualdade é a dramática subutilização do potencial de trabalho deste país. Além da terrível situação de pobreza, trata-se de um imenso desperdício3.

O Brasil vive uma rara oportunidade. Pela primeira vez está se fazendo um esforço generalizado para tirar o andar de baixo da miséria.

O Bolsa Família atinge cerca de 48 milhões de pessoas. O aumento da capacidade de compra do salário mínimo é da ordem de 30%, com impacto extremamente amplo – até mesmo entre os “mal aposentados”, cuja renda é atualizada em função desse piso.

O Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) passou de R$ 2,5 bilhões para R$ 12,5 bilhões, um apoio direto à inclusão produtiva, e o programa Territórios da Cidadania está orçado em R$ 11 bilhões para o primeiro ano, com previsão para atingir 958 municípios em 60 regiões.

Ninguém pode se queixar de falta de iniciativas. Falar mal do Executivo tornou-se tão natural no Brasil que quando aparece um bom governo as pessoas se esquecem de mudar o discurso.

Mas, se as iniciativas são corretas e o rumo é adequado, o fato é que a dimensão dos desequilíbrios herdados é imensa.

Um grande grupo de especialistas se debruçou sobre as formas de ajudar as comunidades mais pobres, que Milton Santos chamava de circuito inferior da economia, a tomar as rédeas do desenvolvimento4.

Um dos pontos que apareceu indiretamente como resultado da pesquisa é que, em geral, não é propriamente o processo produtivo que constitui o problema central, e sim os entraves colocados pela intermediação financeira, comercial e jurídica.

Ou seja, os entraves à entrada dos pequenos nos circuitos econômicos estão diretamente ligados aos “pedágios” cobrados por diversas categorias de atravessadores.

O mais evidente é o caso das taxas de juros. A taxa de juros média geral para pessoa física atingiu, em julho de 2008, 7,33% ao mês, o que corresponde a 133,7% ao ano. Para pessoa jurídica, a cifra era de 4,23% ao mês, chegando a 64,4% ao ano. Estes são juros comerciais, praticados pelo chamado mercado, onde o governo não tem interferência.

A taxa Selic é da ordem de 1,1% ao mês e de 13% ao ano. Ou seja, o juro praticado pelos intermediários financeiros no Brasil é dez vezes superior ao praticado no exterior, inviabilizando o financiamento produtivo. As grandes corporações recorrem ao autofinanciamento ou ao financiamento externo, mas o pequeno se vê simplesmente privado de capital5.

A intermediação comercial gera dramas semelhantes. Os grandes têm como organizar os seus próprios circuitos de comercialização e de distribuição, pagando à grande mídia para divulgar o produto. Já os pequenos ficam simplesmente na mão do atravessador.

O direito à comunicação se vê drasticamente restrito pela perseguição às rádios comunitárias, dificultando a articulação regional e local. O fomento tecnológico é essencialmente dirigido aos grandes produtos da monocultura, enquanto para o andar de baixo as tecnologias sociais engatinham.

O acesso à informação tecnológica é eivado de direitos, patentes e outros obstáculos legais que deixam os pequenos, que não têm departamento jurídico, perdidos. Isso quando eles sabem que as tecnologias existem.

O que se sugere aqui é que grande parte dos entraves na inclusão produtiva não constitui entraves físicos no sentido de disponibilidade de máquinas e de vontade de desenvolver esforços produtivos.
Trata-se do acesso à poupança, que é da própria comunidade, e não dos bancos. Do acesso aos circuitos comerciais, onde a informação é essencial. Da apropriação de tecnologias, onde a facilidade de acesso se torna indispensável.

Em outros termos, grande parte do que pode destravar a expansão das inúmeras iniciativas econômicas e sociais do andar de baixo da economia constitui o que se chama de “intangíveis”, de software econômico, por assim dizer, e não de hardware. São insumos de baixo custo, densos em tecnologias simples e em organização.

Iniciativas pontuais estão se multiplicando no Brasil, com o acesso generalizado à internet banda larga (WiFi urbano) para tornar direta a comunicação e, portanto, facilitar a conexão entre os agentes econômicos; as parcerias entre comunidades e universidades regionais para tirar a mediação do acesso à tecnologia; os bancos comunitários de desenvolvimento, cooperativas de crédito, Oscips e outras soluções para escapar do cartel da intermediação financeira; as redes de pontos de cultura para democratizar o acesso direto entre produtores e consumidores de conteúdo; e o fornecimento direto de produtos hortifrutigranjeiros aos consumidores urbanos.

Os exemplos são inúmeros e a variedade, também. É um dos desafios mais promissores: inverter o sinal político das novas tecnologias, transformando elitização em inclusão, num processo sinérgico com as iniciativas distributivas em curso. O que mata o pequeno, o local, não é o tamanho: é o isolamento que trava a sua iniciativa e o torna dependente dos circuitos cartelizados.

As experiências têm um denominador comum: aproveitam as tecnologias que facilitam a conectividade, buscam retirar os intermediários dos processos econômicos e, com isso, resgatam o valor agregado apropriado pelos atravessadores dos mais variados tipos. São os primeiros passos, mas o potencial é imenso.


Notas
1 Don Tapscott e Anthony Williams, Wikinomics, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2007. Sobre o tema, ver também Revolutionary Wealth, de Alvin Toffler, e The Necessary Revolution, de Peter Senge.
2 Segundo a classificação internacional, população entre 15 e 64 anos de idade.
3 IPEA, Estado da Nação 2006. Emprego, trabalho e informalidade, Brasília, 2006.
4 Política Nacional de Apoio ao Desenvolvimento Local, Instituto Cidadania, 2007. Síntese disponível em http://dowbor.org, em “Artigos Online”.
5 Pesquisa Mensal sobre Juros da Anefac (Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contábeis – Pesquisa Mensal sobre Juros).

* Ladislau Dowbor é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia, e professor titular da PUC-SP. É autor de “A reprodução social e Democracia economômica - um passeio pelas teorias”

Pesquisa, copy e edição - Flavio Deckes, com Le Monde Diplomatique

O Imperialismo, Hoje


Por Pablo González Casanova
Ex-reitor da Universidade Nacional Autônoma do México

No fim do século XX, o imperialismo, que é a formação mais avançada do capitalismo, domina no mundo inteiro, com exceções como Cuba, muito pouco explicadas na teoria das alternativas. Desde os anos 1970 e 1980, as redefinições ou reestruturações do imperialismo deram uma força especial ao processo conhecido como “globalização”.

Sob esse processo se delinearam as novas formas de expansão das grandes potências, em particular dos Estados Unidos. Na década de 1970, os Estados Unidos tomaram a ofensiva no controle mundial ao impor o dólar em vez do ouro, que até então tinha sido o referente de todas as moedas. Os Estados Unidos, juntamennte com a Europa e o Japão, formaram uma Tríade (que o primeiro país encabeçou) e com ela promoveram uma política de endividamento interno e externo dos governos que enfrentavam uma crise fiscal crescente ou uma crise na balança de pagamentos.

Suas principais vítimas foram os governos dos países dependentes, incapazes de alterar a relação de intercâmbio desfavorável, ou o sistema tributário regressivo, e coagidos ao mesmo tempo a satisfazer demandas populares mínimas para manter sua precária estabilidade. A política global de endividamento dos poderes públicos e nacionais renovou o velho método de submissão dos devedores pelos credores, e ocorreu em nível macroeconômico mundial, incluindo muitos governos das cidades metropolitanas.

O processo de endividamento correspondeu ao desenvolvimento de um capitalismo tributário e à submissão financeira renovada dos países dependentes. Com taxas de juros móveis, que podiam aumentar à discrição do credor, a política de globalização impôs um sistema de renovação automática de uma dívida crescente e impagável que fez da dependência um fenômeno permanente de colonialismo financeiro, fiscal e monetário. Desde 1973, após o golpe de Estado de Pinochet, implantou-se no Chile o neoliberalismo.

Desde os anos 1980, o neoliberalismo se converteu na política oficial da Inglaterra, com Thatcher, e dos Estados Unidos, com Ronald Reagan. As forças dominantes enalteceram o neoliberalismo como uma política econômica de base científica e de aplicação universal, reafirmando e renovando a ofensiva anglo-saxã, que desde o século XVII impulsionara a Inglaterra, sob o manto do liberalismo clássico, a aproveitar as vantagens que o fato de ser o país mais industrializado lhe dava no comércio mundial.

A globalização neoliberal iniciada no fim do século XX também teve como objetivos centrais: a privatização dos recursos públicos; a desnacionalização das empresas e patrimônios dos Estados e povos; o enfraquecimento e a ruptura dos compromissos do Estado social; a “desregulagem” ou supressão dos direitos trabalhistas e da previdência social dos trabalhadores; o desamparo e a desproteção dos camponeses pobres em benefício das grandes companhias agrícolas, particularmente as dos Estados Unidos; a mercantilização de serviços antes públicos (como a educação, a saúde, a alimentação, etc.); o depauperamento crescente dos setores médios; o abandono das políticas de estímulo aos mercados internos; a instrumentação deliberada de políticas de “desenvolvimento do subdesenvolvimento” com o fim de “tirar do mercado” globalizado os competidores das grandes companhias.

O neoliberalismo globalizador exportou a crise para as periferias do mundo ao mesmo tempo em que se apropriou dos mercados e meios de produção e serviços que tinham sido criados no pós-guerra, substituindo os que não fossem rentáveis e estabelecendo um neocolonialismo cada vez mais acentuado e repressivo, em que compartilhou os lucros com as oligarquias locais, civis e militares, e negociou com elas privatizações e desnacionalizações para associá-las ao processo.

A negociação, como concessão, cooptação e corrupção, adquiriu características macroeconômicas e esteve constantemente vinculada a novos fenômenos de paternalismo, de humanitarismo caritativo, de cooptação e corrupção de líderes e clientelas, fenômenos que abarcaram até mesmo as populações mais pobres e castigadas, contra as quais se preparou um novo tipo de guerra chamada de baixa intensidade, com o emprego de contingentes militares e paramilitares, e com as mais variadas formas de terrorismo de Estado por conta das “forças especiais”, encarregadas de “operações encobertas” realizadas por agências governamentais, ou por agentes subsidiados e contratados pelas mesmas.

Os negócios da droga aportaram contribuições milionárias na montagem de um teatro de confusões e à perda de sentido das lutas alternativas. Também serviram para consegur a criminalização, real ou fingida, de líderes e movimentos populares, sistêmicos e anti-sistêmicos. Nos anos 1990, a guerra econômica entre as grandes potências substituiu o projeto de governabilidade do mundo pela Trilateral.

Os Estados Unidos subjugaram em poucos anos o Japão e os Tigres Asiáticos. O grande capital impôs uma política de apoio fiscal, político e militar crescente aos contribuintes mais ricos, muitos deles possuidores dos bancos e das megaempresas, amiúde também integrantes dos altos cargos públicos e das velhas e novas elites dominantes. Os privilégios para o grande capital legalizaram formalmente a apropriação de recursos públicos e privados no centro e na periferia do mundo capitalista, incluindo o direito a especulações gigantescas como a que esteve a ponto de falir o Banco da Inglaterra.

Passados pouquíssimos anos do início do processo, o complexo militar-empresarial dos Estados Unidos, expressão máxima do capitalismo organizado dominante, confirmou que suas mediações, instituições e recursos de dominação ideológica, política e econômica tinham chegado a um ponto de crise ameaçadora ao seu domínio e interesses. Isso o levou a endurecer sua política e empreender novas ações que lhe permitissem se manter na ofensiva e ampliar sua situação de privilégio.

A crise das mediações do capitalismo organizado se manifestou: em um crescente desprestigio de seu projeto de democracia de mercado; nos graves escândalos de corrupção de que foram atores os principais gerentes e proprietários das megaempresas – supostamente mais honrados do que os funcionários populistas e socialdemocratas dos governos dos Estados “minimizados”; no insuportável mal-estar de uma cidadania sem opções, aprisionada entre os mesmos programas e políticas de democratas e republicanos, e vítima da insegurança social e do desemprego em ascensão; da deterioração e da insuficiência das escolas públicas; da falta de serviços médicos e de remédios; da criminalidade generalizada em zonas urbanas e rurais.

As eleições fraudulentas e elitistas em que Bush perdeu a presidência dos Estados Unidos por 500.000 votos e pouco depois a ganhou pela decisão de uma minoria de quatro juizes a favor e três contra, foram o ponto de partida de um processo de lógica totalitária em que as mentiras não são ditas para que se acredite nelas mas, sim, para que sejam obedecidas. E como à crise de instituições e de mediações se somou o perigo de uma recessão que não cedia, os Estados Unidos levaram a Europa à guerra econômica com a qual já tinham controlado o Japão.

Ao mesmo tempo, aceleraram uma ofensiva geopolítica mundial que já tinham iniciado anos antes. Com a invasão do Iraque culminaram suas intervenções na Europa Central (Kosovo), na Ásia Central (Afeganistão) e no Oriente Médio, esta última por conta de Israel, um elemento da estratégia militar do “Ocidente” cada vez mais instrumentalizado pelos Estados Unidos.

Dez anos de bombardeios contra o Iraque, apoiados pelas próprias Nações Unidas, após debilitar e empobrecer terrivelmente este país, facilitaram a ocupação de seu território e, sobretudo, de suas imensas riquezas petrolíferas. Os Estados Unidos mostraram cada vez mais estar na posição de líder da globalização neoliberal e inclusive fizeram gestos simbólicos e prepotentes que confirmaram seu caráter de “Soberano” que pode estar acima das Nações Unidas para declarar a guerra, da Suprema Corte da Justiça para violar os direitos humanos, dos acordos de Kioto para não assinar um compromisso que os obrigasse a tomar as medidas necessárias para a preservação da Terra.

A nova política globalizadora diante da crise interna e externa consistiu em dar prioridade ao neoliberalismo de guerra e à conquista de territórios, empresas e riquezas mediante o uso da força. No campo ideológico os Estados Unidos complementaram sua ideologia de luta pela democracia e pela liberdade, gravemente desprestigiada, pela ideologia de uma guerra preventiva contra o terrorismo.

Adjudicaram-se o direito de definir o que seria terrorismo e de incluir na definição todos os opositores de que precisassem se desfazer, bem como de excluir dela todos os delinqüentes de que tivesse necessidade e seus próprios corpos especiais militares e paramilitares “com direito a matar” e “torturar”. A guerra não esteve incluída nos atos de terrorismo, nem o bombardeio e extermínio das populações civis, de povos, cidades e países inteiros. Pelo contrário, os Estados Unidos afirmaram empreender uma guerra do Bem contra o Mal, dispondo-se a travá-la em todas as partes do mundo e por um tempo indefinido.

Nem todos os falsos mitos da Idade Moderna foram destruídos. Muitos, como a democracia com sangue, foram impostos pela força. O governo dos Estados Unidos fingiram que tinham ido ao Iraque para impor a democracia e construir um país independente mediante a conquista. Seus enganos premeditados mostraram tanta violência quanto a que exerceram sobre a população do Iraque com o argumento de que seu verdadeiro objetivo era aprisionar Sadam Hussein, enquanto, para tanto, destruíam o país, cidade por cidade e casa por casa, e se apoderavam de seus ricos poços de petróleo.

A consternação mundial diante dessa política desumana se manifestou no desfile de milhões de pessoas nas grandes capitais do mundo. Também apareceu no desconcerto e na sensação de impotência que viveram os movimentos sociais partidários da paz e em luta por “outro mundo possível”. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos se propuseram a demonstrar sua decisão de atuar sozinhos quando fosse necessário, e de associar aos seus projetos de intervenção mundial os governos dos países
altamente desenvolvidos e das potências intermediárias, assim como as demais burguesias e oligarquias do mundo que se submetessem a aceitar e apoiar “os seus valores e os seus interesses”.

Mediante concessões e repressões, trataram de forjar um complexo imperialista. Pelo sentido comum entenderam que a repartição do butim e das zonas de influência deveria conceder prioridade sempre aos Estados Unidos, com pequenos ajustes prévia ou posteriormente negociados. A política de repressões e de negociações abarcou todos os atores e todas as ações. Orientada sempre pela política de privatização, incluiu a privatização das empresas de guerra e dos exércitos, e a privatização em profundidade e em extensão, incluindo a terra e o subsolo, as fontes energéticas, a água e os mares, o ar e o espaço aéreo.

Nesta etapa da globalização neoliberal, os Estados Unidos e seus complexos e redes de associados e subordinados continuaram aproveitando a crise atravessada pelos movimentos de libertação e aqueles favoráveis à democracia e ao socialismo. Os movimentos alternativos, sistêmicos e não sistêmicos, continuavam padecendo da desestruturação e alienação de ideologias e estruturas e dos fluxos de informação e ação.

Embora desde os anos 1990 começasse o movimento universal por uma nova alternativa, que procurava combinar e enriquecer as experiências das lutas anteriores, a clareza de idéias e a eficiência da organização de povos, trabalhadores e cidadãos mostraramse muito ineficientes para enfrentar a terrível ofensiva. Muitos deles tinham pensado que a crise crescente do capitalismo em si mesma os favorecia. Não tinham imaginado a imensa capacidade de reação e de violência de que era capaz o capitalismo. Ou não quiseram vê-la.

A “guerra preventiva de ação generalizada” não constituiu somente uma mudança profunda em comparação com a “estratégia da contenção” que tinha predominado durante a guerra fria: foi também a forma mais adequada – a curto prazo – para que o grande capital e as potências imperialistas impedissem o desenvolvimento da consciência e a organização das forças alternativas emergentes. Nessas circunstâncias, umas contradições começaram a atropelar as outras sem que se destacassem as lutas pela libertação, pela democracia e pelo socialismo como aquelas capazes de dar um novo sentido à História.

untamente com as grandes manifestações de protesto contra a guerra, apareceram movimentos locais e globais de uma riqueza teórica e organizativa extraordinária; mas suas lutas tenderam a limitar-se a ações de protesto, e quando muito a ações de pressão passageira, ou de lenta construção de alternativas. Em sua maioria, continuaram a mostrar-se incapazes de diminuir o ímpeto da política neoliberal que, na paz e na guerra, está levando o mundo a uma catástrofe generalizada.

A tais movimentos, ao mesmo tempo alentadores e incipientes, somaram-se outros, de um pensamento religioso e fundamentalista, que tendem a reproduzir a situação anterior de opressão e alienação dos povos oprimidos e fanatizados. Os líderes da resistência raramente se mostraram líderes de um pensamento crítico e radical; ou, freqüentemente, o representaram em suas formulações mais autoritárias e confusas, como no caso dos maoístas do Nepal, que voltaram a agir como líderes de movimentos armados incapazes de construir um mundo alternativo.

Em muitos outros casos, os movimentos guerrilheiros foram penetrados pela contra-insurgência que, com o narcotráfico e os agentes especiais, os desabilitaram a empreender a necessária revolução ético-política. Numerosas guerrilhas se transformaram em grupos de foragidos sem outra lei nem ideologia além da pilhagem e da dominação repressiva das próprias populações em que se inseriam, às quais por vezes chegavam a impor políticas clientelistas e de privilégios excludentes, étnicos ou lingüísticos.

Pareciam estar feitas à imagem e semelhança dos “terroristas bestializados” pelo terrorismo de Estado. Por todas as partes, e nas mais diversas culturas, desenvolveram-se instintos autodestrutivos, individuais e coletivos, muitos deles vinculados a uma violência do desespero. No campo das lutas políticas e sociais, dos partidos e das organizações da sociedade civil, os modelos de corrupção e repressão, de conformismo e de alienação anularam diversos movimentos que, de início, indicavam uma saída aos povos.

Seus líderes foram cooptados ou corrompidos, ou simplesmente se adaptaram a um mundo controlado em que predominam as filosofias individualistas segundo as quais cada um “defende o seu”. É verdade que, ao mesmo tempo, foram surgindo grandes movimentos como os de Chiapas no México, Seattle nos Estados Unidos, Porto Alegre no Brasil, o outro Davos na Europa, Mombay na Índia e muitos outros, que tentam unir o local e o universal e criam os novos projetos de um mundo livre, eqüitativo e independente que se aproxima da verdadeira democracia, do verdadeiro socialismo e da verdadeira libertação.

Todas as lutas mencionadas, porém,ocupam um espaço pequeno demais no tocante às necessidades da mudança sistêmica e da sobrevivência humana, ameaçada por uma guerra contra os pobres que pode terminar em guerra bacteriológica e nuclear. Apareceram ao mesmo tempo, por conseguinte, as contradições entre o imperialismo e os países dependentes, neocoloniais e recolonizados; as contradições entre os trabalhadores e o capital, muitas delas mediatizadas e estratificadas; as contradições entre as etnias e as nações-Estado; as contradições entre as potências atômicas e nucleares e entre os próprios integrantes da comunidade imperialista, zelosos de suas zonas de influência e temerosos de perder poder e privilégios.

Todas estas e muitas outras contradições se esboçaram em um imperialismo dominante mais ou menos coletivo, que tende a identificar-se com o capitalismo como sistema global. O desfecho das contradições não pareceu assegurar-se no sentido de que um sistema mais justo e livre do que o sistema capitalista mundial pudesse ser atingido no tempo de uma geração de lutadores políticos, sociais ou revolucionários.

Ainda mais, a ameaça à sobrevivência da humanidade fez com que os governantes obrigatoriamente pensassem em uma alternativa ainda mais sinistra, capaz de manter seus privilégios e seu poder: a destruição de uma parte da humanidade para a sobrevivência do resto dela. Este raciocínio levou à imposição paulatina e constante de um regime de “nazismo-cibernético”, com a eliminação de povos inteiros pelo mundo afora, à maneira de Pol-Pot, ou do equivalente aos sete milhões de judeus vitimados pelo nazismo anterior, que agora desponta no campo de concentração e eliminação em que o imperialismo e seus associados converteram a Palestina.

A imoralidade e a criminalidade doentias dos novos dirigentes do sistema, como as dos antigos nazis, combinadas com o conhecimento e o uso que fazem das tecnociências e dos sistemas auto-regulados, adaptativos e criativos, anunciam obscuramente um futuro negro para a humanidade, caso os povos das periferias, e inclusive os das metrópoles, não consigam impor a transição para um sistema de produção e democracia pós-capitalista que assegure a vida humana e a sobrevivência da espécie.

Todas as redefinições do imperialismo de hoje parecem dirigir-se à construção de um império liderado pelos Estados Unidos, seus associados e subordinados, em que é mais provável uma guerra entre as potências nucleares do que uma revolução social, ou do que uma mudança de rota em direção à socialização, democratização e independência real das nações, cidadãos e povos. Deste fato derivam, em parte, as afirmações irresponsáveis de Michael Hart e Antonio Negri no sentido de que seja necessário substituir o conceito de imperialismo pelo conceito de império e o de luta de classes pelo de uma luta da “multidão” contra o “império”.

A superficialidade desta interpretação se deve em grande medida a uma conjuntura histórica em que é evidente que a construção do império mundial pelos Estados Unidos ocupou o primeiro plano da cena. Também se deve ao fato evidente de que a luta de classes original e atual tem sido fortemente mediatizada por outras lutas políticas, econômicas, ideológicas e sociais, e de que as organizações que lutaram contra o sistema de dominação e acumulação característico do Capitalismo foram mediatizadas e derrotadas, primeiramente no século XIX, depois no século XX. No início do século XXI ainda se vive a desorganização das forças alternativas e de suas próprias organizações ou meios para alcançar o socialismo, a democracia, a libertação.
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O caráter relativamente desestruturado e multitudinário que as forças alternativas ainda apresentam é evidente. Mas, nem do projeto norte-americano de um Império Global, nem da crise mundial das alternativas se pode derivar que, em vez de pensar e agir contra o imperialismo, se deva pensar e agir contra o império, e que, em vez de pensar nas novas organizações da resistência e da organização do poder alternativo, se deva lutar nos termos vagos de um pensamento libertário ou neoanarquista conservador que pretenda enfrentar a multidão desorganizada ao capitalismo mais organizado de toda a História.

A origem da formulação mistificadora de Hart e Negri provém de uma lógica das disjuntivas que geralmente tem sido reacionária. Consiste em pensar que as novas características do imperialismo acabem com o imperialismo, ou que os novos aspectos da luta de classes se expressem em uma luta histórica empreendida pelas multidões – este outro termo que o pensamento conservador e elitista sempre aplicou aos povos que teme agressivamente.

A verdade é que hoje, mais do que nunca, o conceito do imperialismo como uma etapa do capitalismo e da História da humanidade continua sendo um conceito fundamental. Ao articular a História dos impérios com a História das empresas, o conceito de “imperialismo” pôs a descoberto o poder crescente das empresas monopolistas e do capital financeiro. Também reformulou a luta antiimperialista combinando a luta das nações oprimidas com a luta das classes exploradas.

Se hoje estamos assistindo à construção de um império mundial pelo complexo militar-empresarial dos Estados Unidos (e a palavra império lhes parece grata desde a rainha Vitória), tal projeto de Império corresponde às mais avançadas políticas imperialistas e capitalistas: combina a força crescente das megaempresas e das potências, em que se apoiam e de que se servem, com as novas formas de dominação e exploração dos povos e dos trabalhadores. De fato, o projeto mencionado articula cada vez mais o imperialismo ao capitalismo, até tornar cada um deles incompreensível sem o outro.

Ainda mais, permite explorar as contradições na construção do império mundial norte-americano em pugna inevitável com outros impérios dada sua crescente apropriação e dominação de territórios, recursos e populações, bem como o fato de que apareça como o beneficiário principal da nova acumulação original e ampliada de capitais, formulando problemas de insegurança às grandes potências e às potências intermediárias.

A luta contra o imperialismo e o capitalismo, encarada como uma luta pela democracia, pela libertação e pelo socialismo, corresponde, por sua parte, a um fenômeno alternativo de sistemas emergentes, e, tanto por suas tendências naturais como pelas que serão encaminhadas para atingir tais objetivos, pode ter um crescimento exponencial que inclua a própria população dos Estados Unidos, sem mencionar a do resto do mundo.

Nesse futuro o exemplo de Cuba, longe de ser “excepcional”, tem características universais que se tornarão cada vez mais evidentes conforme se descubra nela a necessidade ético-política que todo movimento pela libertação, pela democracia e pelo socialismo deve priorizar na organização de seu pensamento e de suas ações.

Pesquisa, copy e edição – Flavio Deckes