16.3.10

O Sigilo Bancário Suiço em Perigo

Entrevista com Konrad Hummler, dono do banco mais antigo da Suiça

No ano de comemoração dos 500 anos de Calvino, a crise financeira e moral fazem aproximar o capital e a Igreja. Segundo o banqueiro privado Konrad Hummler, tanto as instituições financeiras como os clientes cederam às "tentações" dos lucros – o pecado seria então "mútuo".

Nos últimos tempos muito se escutou que a crise financeira atinge menos os verdadeiros banqueiros privados do que executivos dos grandes bancos. Razão: os executivos reagiram à promessa de altos salários e bonificações.

Já os banqueiros privados arcam com sua própria fortuna para cobrir os possíveis prejuízos das instituições que dirigem e, por isso, suas qualidades morais seriam superiores. Segundo Konrad Hummler, essa característica é parte da herança da tradição calvinista da Suíça.

Essa herança é mantida viva por Konrad Hummler, no Banco Wegelin, de St. Gallen. A mais antiga instituição bancária do país está apenas alguns passos distante do famoso mosteiro da cidade, um símbolo nacional do catolicismo. Muitos suíços desconhecem, porém, que St. Gallen já abrigou uma comunidade protestante, que data dos tempos do reformador Ulrich Zwingli.

swissinfo: Há pouco tempo o senhor, como banqueiro, participou de um debate no contexto do ano de Calvino com teólogos e economistas da Universidade de St. Gallen. O tema foi Deus, dinheiro e como lidar com este na ótica cristã. Isso é possível?

Konrad Hummler: O Reformador genebrino Calvino, cujo 500° aniversário é comemorado este ano, é considerado internacionalmente o precursor do capitalismo. Pois, ao contrário da Igreja católica, ele aceitava negócios a créditos no século XVI.

Mas ele condicionava a cobrança de juros a elevados quesitos morais. Honestidade, fidelidade aos contratos, discrição e também parcimônia foram considerados por muito tempo no exterior como virtudes dos suíços e de seus banqueiros, antes dos tempos atuais em que esses banqueiros perderam algo da sua aura.

P - Com o modelo de negócio dos nossos banqueiros, não teria também o modelo de Calvino perdido muito da sua aura?

R - Tenho lido isso na imprensa helvética desde que comecei a acompanhar os noticiários negativos relativos ao UBS e a outros bancos suíços. Porém não acredito pessoalmente nisso.

O que vivemos na Suíça nos últimos vinte e cinco anos foi uma invasão da atitude anglo-saxã. Ela nos trouxe hábitos, idéias de negócios e uma moral de negócios que nos eram estranhas.

Por exemplo, o costumeiro modelo de compensação com bonificações elevadas no setor de banco de investimento e que se tornou prática nos bancos helvéticos. Isso não tem nada a ver com Calvino.

Esse modelo de banqueiro não combina muito bem com a mentalidade suíça. Esta é menos orientada ao chamado "boom and bust" (altos e baixos) anglo-saxão, ou seja, a uma sucessão cíclica de grandes sucessos, seguidas depois por quebras e demissões.

P - O que é o modelo suíço de fazer negócios?

R - O modelo suíço sempre foi aquele com a constância. Por isso a Suíça, como base do Calvinismo, continuará a existir como importante praça financeira internacional.

É falso acreditar que a autorização dada por Calvino há quinhentos anos atrás de cobrar juros sobre empréstimos seja equivalente a uma carta branca para uma forma desenfreada de gerir bancos.

Mas o fato é que os bancos suíços perderam um pouco do espírito de Calvino, sobretudo em Genebra, a cidade do reformador, onde muitos banqueiros acabaram tendo grandes prejuízos depois de especular bastante. Também na cidade natal de Calvino, com a exceção de um grupo relativamente pequeno de banqueiros privados – e que por isso são fiadores das suas instituições com sua própria fortuna –, houve muitos bancos que cederam às tentações dos lucros elevados. Afinal, estes haviam quase se tornado normais nos últimos tempos.

Porém eles o faziam também a mando da sua clientela. Por isso considero esse um pecado "mútuo".
Atualmente os banqueiros não têm tido muito perdão, pelo menos na opinião pública. O que diria Calvino nessa situação? Eles seriam perdoados por Deus? Calvino tinha sua própria teologia na questão do perdão divino. Ela já foi muito criticada, mas seria agora bem oportuna. Segundo Calvino, o sucesso nos negócios é um sinal do perdão divino e não do mérito próprio.

A consequência disso é que o peso do indivíduo em uma empresa se relativiza, inclusive suas pretensões como, por exemplo, as salariais.

Ou, como falamos hoje no jargão dos banqueiros: um executivo-chefe dificilmente atinge sozinho o return on equity (retorno sobre o patrimônio) da sua empresa. Por isso, Calvino iria dizer hoje em dia: seja mais modesto!

P - Teria Calvino uma receita contra o aumento desses altos e baixos dos ciclos econômicos?

R - Dentro do contexto de que o sucesso é originado através do perdão divino, a perspectiva calvinista acaba ganhando uma certa resistência contra crises econômicas e financeiras, na minha opinião.

"Deus deu. Deus retirou – salvo seja o Senhor", dizia Jó. E esse pensamento encontrou sua continuação em Calvino."

Estou convencido de que essa resistência aos choques mais contribuiu em longo prazo para o sucesso econômico dos países protestantes do que as muito citadas diligência e capacidade de fazer dinheiro.

Isso, pois vejo na resistência aos choques um correspondente à capacidade de assumir riscos. Sociedades que não são capazes de assumir riscos e que não aceitam choques, não são bem-sucedidas em longo prazo.
Investidores de sociedades abertas aos riscos sabem, por outro lado, que eles podem ganhar. Afinal, eles sabem lidar com os choques.

P Se existe uma gestão "calvinista" de bancos, qual seria então sua estratégia de investimento?

R - Uma gestão "calvinista" de bancos seria esclarecer com antecedência e de forma transparente a um cliente quais são os riscos que estará correndo ao investir seu dinheiro.
Nós fomos o primeiro banco no país a tentar ilustrar e quantificar o risco durante os aconselhamentos estratégicos de investimento.

Konrad Hummler nasceu em St. Gallen em 1953, onde freqüentou também a escola. Ele estudou Direito em Zurique e Economia em Rochester, nos Estados Unidos.
De 1981 até 1989 trabalhou para o UBS e foi assistente pessoal do presidente do conselho administrativo do banco, Robert Holzach.
Em 1989, Hummler tornou-se diretor do banco privado Wegelin & Co., com sede em St. Gallen. Essa instituição fui fundada em 1741 e, por isso, é o mais antigo banco da Suíça. Konrad Hummler se tornou co-proprietário do banco em 1991. Dessa forma ele é fiador do banco com sua fortuna pessoal.


Sigilo bancário:
uma questão de
vida ou morte


Para os jornalistas Werner Vontobel e Viktor Parma, a maior parte dos suíços pode viver muito bem sem o sigilo bancário. No livro Suíça, um Estado Vil ? , os dois debatem as origens e consequências de um dos pilares da praça financeira helvética. Swissinfo conversou com um dos autores na redação do jornal semanal "Sonntagsblick".

Um dos mitos mais divulgados sobre o sigilo bancário é de que este teria sido criado para proteger os bens de judeus dos tentáculos nazistas. "Falso", é o que afirmam Werner Vontobel e Viktor Parma.

No seu recém-lançado e polêmico livro Suíça, um Estado Vil?, os dois jornalistas dão a resposta: o segredo bancário foi ancorado na lei depois que expoentes da República de Weimar (na Alemanha) se opuseram veementemente à evasão fiscal massiva apoiada pelos bancos helvéticos na época.

Essas e outras revelações são feitas em 223 páginas, um trabalho de reportagem iniciado quando ainda não havia sinais no horizonte de que o sigilo bancário e outros paraísos fiscais no mundo seriam atacados de todas as direções frente a uma das mais graves crises financeiras vividas nos últimos tempos.

swissinfo: A Suíça é um "Estado vil"? O que o senhor quis dizer com o título do seu livro?
Werner Vontobel: A Suíça é um Estado simpático, mas que em todo caso tem traços de vilania e que, com seu sigilo bancário e uma agressiva política de competitividade fiscal, defende seus interesses de uma forma desconsiderada.
P - Por que a pressão sobre a Suíça e o sigilo bancário aumentou nos últimos tempos? R - Em primeiro lugar: a distribuição de renda e de fortuna se tornou claramente mais excludente em quase todos os países. Ou seja, uma parte cada vez maior do substrato fiscal está nas mãos de alguns poucos ricos que têm mobilidade. Isso reforçou a competitividade fiscal e, por consequência, aumentou ainda mais os danos que ela causa. Em segundo: os países necessitam urgentemente de dinheiro para salvar suas economias do colapso.

P - Qual é a origem do sigilo bancário? Por que ele é tão importante para a Suíça?
R - O sigilo bancário não é um problema em si. Problemático é que o fato dele ser vendido de forma agressiva para ressaltar os aspectos positivos da Suíça como local de investimento com o objetivo de atrair estrangeiros ricos - e seu dinheiro - para o país. Se o sigilo bancário é realmente importante à Suíça, é uma questão que deixo aberta. Seguramente ele contribuiu para estabelecer a Suíça como centro global para a administração de fortunas. Niklaus Blattner, ex-diretor da Associação Suíça dos Banqueiros, acredita hoje que o país não precisa do sigilo bancário para ser bem-sucedido na administração de fortunas. Talvez ele tenha razão.

P - É verdade que o sigilo bancário foi criado para proteger as pessoas, sua esfera privada e suas posses?
R - Seguramente tem algo de verdade nessa afirmação. Porém também é verdade que o sigilo bancário tinha desde o início o propósito de atrair dinheiro estrangeiro para a Suíça.

P -Por que a atual discussão sobre o fim ou reforma do sigilo bancário na Suíça é tão acalorada? Até que ponto o país depende tanto do sistema financeiro e de suas especificidades como o sigilo bancário?
R - Eu também não entendo completamente. A administração de fortunas, afinal, é apenas uma parte relativamente pequena do setor, que ocupa menos de 1% de todos os suíços. Além disso, sabe-se através dos autos judiciais dos Estados Unidos que o UBS conduziu os negócios de sonegação fiscal de uma forma bem maléfica.

No início, as pessoas na Suíça estavam furiosas especialmente com o UBS. O ministro alemão das Finanças, Peer Steinbrück, conseguiu agora com suas declarações arrogantes transmitir a muitos suíços a impressão de estarmos em guerra econômica com outras praças financeiras.

P - Como países em desenvolvimento são atingidos pelo sigilo bancário?
R - Retiramos deles dinheiro dos impostos e mesmo se este não é aplicado corretamente nos países atingidos, a qualidade de vida neles é atingida fortemente por estas perdas. Isso é uma questão de vida ou morte, enquanto nosso padrão de vida através desse excedente de receitas sobre a administração de fortunas não aumenta de forma palpável, se é que aumenta.

Muitos pleiteiam na Suíça que apenas o princípio da competitividade fiscal está sendo defendido e que o problema, na verdade, estaria nos outros países de tributação elevada como Alemanha e França.

P - Qual a sua opinião sobre o tema?
R - Existe uma verdade nisso, mas não cabe aos suíços melhorar as leis fiscais ou a administração de outros países. Além disso, percebemos aqui dentro da Suíça que os paraísos fiscais internos têm uma taxa de tributação muito menos elevadas do que Berna ou Zurique. A competitividade fiscal beneficia pela sua natureza os pequenos cantões contra os grandes. Isso tem pouco a ver com habilidade ou eficiência.

Há pouco o jornal NZZ revelou que mais de dois trilhões de francos de clientes privados são administrados por bancos suíços. Uma grande parte desse dinheiro não foi declarada ao fisco nos países de origem. Uma flexibilização do sigilo bancário não poderia ter graves conseqüências para a Suíça? As conseqüências possivelmente não seriam graves sequer para os administradores de fortuna. Será que a pessoa empobrece se, ao invés de cinco, ganhar apenas três milhões?

P - Em um contexto de crise financeira e econômica – e agora também fiscal – qual será o futuro da praça financeira helvética?
R - Ela irá encolher um pouco. As margens do setor de administração de fortunas não serão tão gordas como antes. Isso é parte da chamada transformação estrutural.

P - A Suíça e outros países europeus aceitam agora as regras da OCDE. Será que o modelo do paraíso fiscal já pertence ao passado? Mas o que o senhor diz de Dubai, Qatar, Ilhas do Canal ou o Estado de Delaware, nos Estados Unidos?

R - Na Suíça cogita-se agora introduzir o modelo de "trust". Também outros paraísos fiscais estão sob pressão. Naturalmente a Suíça pode apontar que ainda existem outros paraísos, mas isso não vai adiantar muito. Além disso, é normal que a pressão sofrida pela Suíça seja maior. Afinal, somos, com grande distância, o maior paraíso fiscal do mundo. Se tentarmos agora criar novos refúgios fiscais, então essa pressão irá aumentar mais ainda. Para mim essas idéias não passam de reações infantis de teimosia.

* Werner Vontobel, 63 anos, trabalha como jornalista especializado em economia para o semanário dominical "SonntagsBlick".

SIGILO BANCÁRIO
TEM HISTÓRIA


O sigilo bancário nasceu juridicamente em 1934, depois da crise ocasionada pela quebra da bolsa de Nova York em 1929. No mundo em crise entre as duas guerras mundiais, os Estados europeus, decididos a limitar a fuga de capitais para o estrangeiro, iam direto ao assunto. Em 1932, a polícia francesa invadiu a agência do Banco Comercial de Basiléia em Paris e confiscou os dados de milhares de clientes.

Essa violação da legendária tradição de discrição cultivada há séculos pelos banqueiros suíços foi um dos acontecimentos que levou a Confederação Helvética a inscrever o sigilo bancário na lei federal sobre os bancos.

Na realidade, o sigilo bancário garante aos clientes dos bancos suíços que as informações que lhes concernem serão mantidas confidenciais e não serão transmitidas a pessoas físicas, às administrações nem ao fisco. Porém a Suíça manteve uma distinção que caracteriza a especificidade de seu sigilo bancário: a diferença entre evasão e fraude fiscal.

O contribuinte que, intencionalmente ou por negligência, deixar de declarar, por exemplo, parte de sua fortuna, é passível apenas de multa. Em contrapartida, aquele que falsifica documentos (um atestado de salário ou balanço) pratica uma escroqueria que é punível pelo código penal com pena de prisão ou multa. Sob requerimento de um juiz, o sigilo bancário pode ser suspenso em caso de fraude.

Devido a essa distinção, as autoridades helvéticas só aceitam a colaboração administrativa e judiciária com outros países em caso de fraude, não de evasão fiscal.

Em 13 de março de 2009, o governo suíço anunciou que futuramente prestará assistência administrativa a outros países não só em casos de fraude fiscal, como também, "caso por caso" e por "petição concreta e justificada", quando há suspeita de sonegação de impostos.

Pesquisa, copy e edição – Flavio Deckes, com swissinfo

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