28.3.10

A Crise Financeira atual nos Estados Unidos é uma Crise Urbana


O geógrafo David Harvey, professor na City University
of New York (CUNY), é bastante conhecido pelas suas
análises políticas, econômicas
e culturais sobre as cidades e
os processos sociais contemporâneos.

Em trabalhos como Justiça Social nas Cidades (1973),
A Condição Pós-Moderna (1989),

O Novo Imperialismo (2003)
ou Neoliberalismo (2008) são analisados os
conflitos urbanos relacionados com os processos
de formação e acumulação do capital.


Por David Harvey *

Ao longo da história, nos momentos de crises vemos surgir um novo capitalismo. Vivenciamos isso na crise dos anos 70, um ponto de inflexão importante que fez nascer o neoliberalismo, a financeirização, bem como um notável aumento da desigualdade social.

E hoje estamos novamente num desses momentos. Se atentarmos para as respostas que estão sendo propostas em Washington e em Londres, vemos que se deve preservar primeiramente as instituições financeiras, ficando o povo em segundo lugar, e com a função de pagar a conta!

Mas esse foi justamente o grande mote, em outras palavras, da revolução neoliberal dos anos 70. Vivemos de fato um programa de ajuste estrutural em escala global que vem sendo administrado não pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), mas sim pelo mercado.

Dizíamos que, de fato, os Estados Unidos deveriam ser monitorados por um organismo do tipo do FMI, mas os Estados Unidos são o FMI e eles não vão se automonitorar. Portanto, não creio que este seja o fim desse tipo de liberalismo ou neoliberalismo.

Acredito que há um profundo empenho em salvar as instituições financeiras e as pessoas que as administram tanto quanto possível. E o povo terá que pagar a conta.

Acho que a dificuldade neste preciso momento está na maneira como legitimar tal processo. Nos anos 70, bastava entoar o cântico “o mercado livre se encarregará de fazer todos os ajustes”.

Agora nos encaminhamos para uma crise de legitimidade na qual a população não necessariamente vai aceitar o que lhe estão impingindo, em especial nos Estados Unidos.

Creio que nos próximos dois ou três anos haverá uma considerável dificuldade política nos centros do capitalismo para legitimar o que estão tentando levar adiante.

Outro dia alguém fez uma estimativa e concluiu que houve cerca de 370 crises financeiras no mundo desde 1970. Entre 1945 e 1976, ocorreram ao redor de 60 crises financeiras. Portanto, o período neoliberal é marcado por muitas crises financeiras.

E por crise eu entendo “ajuste estrutural”. Como suas origens se vinculam ao contexto urbano, a crise atual tem de ser encarada como uma crise urbana.

Nos Estados Unidos deveríamos parar de discutir sobre algo chamado crise hipotecária ou do subprime – as hipotecas de risco – para discutir a crise urbana, que tem como base um superaquecimento do mercado imobiliário americano e começou quando, em 2000, os ricos deixaram de investir em atividades produtivas para se dedicar à especulação, dilapidando ativos patrimoniais, particularmente ações e propriedades.

Na Suécia, em 92, após uma crise originária de uma excessiva especulação nos mercados imobiliários, as instituições financeiras quebraram e os suecos tiveram que nacionalizar os bancos. Já o boom japonês encerrou-se por volta de 1990 no mercado imobiliário e o mercado imobiliário quebrou.

Nos Estados Unidos, temos crises das instituições de poupança e crédito que custam aos cofres públicos cerca de US$ 200 bilhões. E é interessante lembrar o que dizia o presidente das corporações de seguros federais aos banqueiros americanos em 1987: “Se não acertarmos as coisas, teremos que nacionalizar os bancos nos Estados Unidos”. Essa afirmação é de 1987.

Não sei quantas dessas 370 crises estão relacionadas com os mercados imobiliários, mas suponho que pelo menos a metade delas têm algum componente de investimento excessivo no mercado imobiliário. Ou seja, uma das coisas às quais devemos estar atentos é a relação entre urbanização, capital financeiro e formação de crises.

Nos Estados Unidos, acho que podemos de fato considerar esta como uma situação geral, uma vez que desde 1970 temos vivido o que chamamos de arrocho salarial, com o salário real permanecendo estacionário. Ao mesmo tempo, os financiadores emprestaram dinheiro para os incorporadores imobiliários para a construção de condomínios.

Assim, a grande questão era: como as pessoas, cuja renda não está aumentando, pagam por esses imóveis? Bem, os financiadores diziam às pessoas que viviam sob esse arrocho salarial: “Contraiam dívidas!”. Logo, as despesas com moradia nos Estados Unidos aumentaram em cerca de três vezes, ao passo que os salários permaneceram congelados.

O descompasso entre os dois cresceu continuamente. E, em certo sentido, o capital financeiro pôde atuar no cenário urbano tanto fornecendo moradias quanto estimulando demanda por elas, por meio de suas táticas de financiamento. Porém, é claro que seu interesse maior residia na construção de casas de alto padrão e não em oferecer moradia à população de baixa renda.

Assim, da forma como vejo, a estrutura da crise financeira nos Estados Unidos é notadamente urbana no que diz respeito a suas origens. E é justamente essa relação que eu considero importante analisar.

Um dos resultados da crise é que cerca de 3 milhões de pessoas perderam suas casas nos Estados Unidos no último ano. Provavelmente, antes que esse processo termine, entre 6 e 10 milhões de pessoas estarão na mesma situação.

Se observarmos onde isso aconteceu, a onda inicial de inadimplências ocorreu em duas áreas específicas: uma delas, as velhas cidades dos Estados Unidos, como Cleveland, Baltimore e Detroit; a outra coincide com a distribuição da população negra.

Na realidade, tivemos o que podemos chamar de um Katrina financeiro, que atingiu todas as cidades, simplesmente varrendo do mapa os bairros pobres em municípios como Cleveland e Baltimore.

Em Cleveland ocorre uma sobreposição perfeita entre os bairros ocupados por afro-americanos e os lugares onde estão o maior número de pessoas que estão perdendo suas casas por causa das execuções hipotecárias. Foi a maior perda já registrada na história do negro americano de baixa renda.

O que eu realmente quero é enfatizar mais incisivamente a relação entre a dinâmica da urbanização e a acumulação de capital.

Não poderemos solucionar o problema com o “direito à cidade” ** para o conjunto da população sem realmente nos confrontarmos com essa questão central. O capitalismo cresce. Historicamente, desde 1750, ele vem crescendo cerca de 3% ao ano.

E eu vi um cálculo interessante em relação à questão ambiental. Por volta de 1750, a geração total de bens e serviços no cenário capitalista atingia cerca de US$ 135 bilhões, no capitalismo global. Em 1950, o total alcançava US$ 4 trilhões. Em 2000, a cifra elevou-se a US$ 40 trilhões.

Na nossa época, é difícil fazer uma avaliação, mas, se não tivesse ocorrido o crash, chegaríamos a cerca de US$ 50 trilhões, que, provavelmente, se duplicariam nos próximos 25 anos. Onde investir tamanha massa de dinheiro?

Eu espero que haja uma nova agenda [após o colapso financeiro ]. Mas a pergunta é: qual? Como afirmei, estamos inseridos numa crise de legitimidade e esse é um processo que demanda tempo.
Se olharmos para o crack da bolsa de 1929, veremos que houve sérias implicações políticas nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha por volta de 1932. Assim, levou três anos para que as pessoas começassem a se manifestar.

O que eu quero é que nos concentremos no controle sobre os excedentes: quem produz os excedentes, como são produzidos, por quê, como são distribuídos? E para que isso ocorra, é necessária uma reconstrução radical do modo de funcionamento do aparato estatal.

Não sei como é no Brasil, mas em muitos países os governos estão intimamente ligados aos interesses financeiros. Eu costumo brincar que temos nos Estados Unidos um partido político que é o Partido de Wall Street. E ele está tão imbricado no Partido Democrata quanto no Partido Republicano. Temos é que confrontar esse fato.

Não se trata de dizer que Wall Street se opõe à reforma. Na realidade, a própria Wall Street desejará que ocorra uma reforma reguladora. Porém, é preciso atentar para a tese da chamada “incorporação reguladora”, em que as corporações desenham um aparato regulador para atender suas conveniências.

Desde o início do século passado, vários aparatos reguladores desenvolvidos pelos governos foram incorporados pelas corporações. Dessa forma, os aparatos fizeram aquilo que as corporações determinavam.

Há muitas provas de que todos os grupos reguladores na esfera federal a partir de 1990 foram totalmente capturados pelos interesses de Wall Street. E o que é exasperador a respeito da equipe econômica de Obama é que, na verdade, são as mesmas pessoas. Eles não são radicalmente diferentes. Portanto, eles criarão o arcabouço regulador que Wall Street deseja ver incorporado.

* Excerto de entrevista ao Le Monde Diplomatic em março de 2010

** “Direito à Cidade” é um conceito desenvolvido pelo autor. É um direito de participar da construção e da reconstrução do tecido urbano, de formas mais condizentes com as necessidades da massa da população.


Pesquisa, copy e edição – Flavio Deckes

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